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Prateleiras da vida

Crônica de Armando Oliveira A cobrança é intensa, mas sua possibilidade de quitação fica cada vez mais tão remota quanto o da nossa dívida externa. Pedem-me um livro, se possível pinçado de quinze anos de escrivinhações diárias nesta imorata folha. Matéria, não falta, reconheço, a maioria mera sucata do cotidiano, assuntos que se perderam na voragem do tempo, coisas mais minhas que do tolerante leitorado. Por sinal, acho que escrevo mais pra mim do que pros outros, daí esta relutância em encadernar vivências, anseios e frustrações. Dia desses dei uma relida em vários recortes, generosamente colecionados por mãos amigas e muito queridas, encontrando dificuldades em admitir sua autoria. Tive fases de romantismo piegas, ira mal contida, descrença assumida, ironia cruel, como juntar tudo isso numa obra que se pretende coerente? A quem interessaria bisbilhotar meus bons e maus humores, essa vocação de mutante potencial, essa vontade de ficar, mas tendo que ir embora (e vice-v...

Carta ao meu filho

Vendo assim tão de perto, não dá para medir quantos são os matizes que colorem os olhos da sua futura mãe, filho, mas posso lhe assegurar que, se eles forem ajuntados ao esverdeamento predominante dos meus, você chegará a esse mundo muito mais deslumbrante do que deslumbrado, íris tão hibridizadas como as que antevejo em seu olhar ainda por aqui não testemunhei, e sobre isso lhe dou igualmente a minha palavra. Deve estar a se perguntar que assanhamento indisfarçado é esse de minha parte, broto, e me parecerá esperto também se, levado pela presunção, você chegar à consequente conclusão de que há mesmo neste mundo uma cocota que justifique todo esse meu esforço em vida, sendo ela portadora de reciprocidade nos gestos e no amor, inteiramente qualificada a lhe carregar nos braços do instante do seu primeiro ingresso de ar no peito até o terceiro ou o quarto ano da infância, e, ainda por cima, apaixonada como todas as verdadeiras mães costumam ser pelos seus filhos. Não ignore...

Flor de Jasmim

Texto enviado por Danilo França Mesmo um analfabeto – ou analflorbeto, como desejar – no quesito flora, pode perceber o quão grande é a diversidade de plantas neste Brasil varonil e as suas respectivas características, responsável pela identificação da planta, mediante tantas outras. Dentre inúmeras plantas, uma me chamou à atenção. Seu nome é Jasmim, mas para lhes ser sincero, o que de fato me chamou à atenção nesta planta, fora o que nasce no ápice de cada galho, foi a sua flor, que de tão bela não pode ser chamada simplesmente de flor, mas de Flor de Jasmim. É aí onde tudo começa. Antes, uma breve apresentação: a Flor de Jasmim é conhecida principal, mas não unicamente, pelo seu aroma, um aroma forte, imponente, desbravador, instigando o olfato de todos que estiverem por perto. Amada por muitos curiosos e admiradores daquela beleza afrodisíaca, e odiada por outros, uns arrogantes, que, tão compenetrados no cotidiano corriqueiro, não se deixam apreciar tão maravilhosa obra...

A ausência do almoço em família e a sua consequente degeneração

- Vem já almoçar, menino! - Já vou, mainha. - Sai desse computador e vem logo. Sua comida já está na mesa e eu e seu pai estamos te esperando. - Eu sei. Já estou indo. - Aproveita e chama a sua irmã. - Vanessa, mainha tá chamando pra almoçar! - Diga a ela que eu já vou, só vou terminar de falar aqui no celular. - Ouviu, mainha? Ela tá no telefone. - Ouvi, sim. Mas não demorem, porque a comida está esfriando. - Todo dia você chama os meninos e eles fazem isso: enrolam até a gente desistir. - É, Zé, mas fazer o que, né? A gente tá fazendo nossa parte. - É, eu sei, mas eles não obedecem. - Porque será que é tão difícil pra eles almoçarem com a gente? - Ah, não sei, meu bem. Devem ser essas tecnologias todas aí. Quando não estão na internet, estão no telefone ou grudados na televisão. - Eu acho que eles pensam que almoçar junto é coisa antiga, coisa de velho. - Ou talvez tenham enjoado das nossas conversas. Se não for isso, já devem se achar bons em tud...

Malogros da escrevinhação

Tem um primo que me liga – e registro isso aqui com um sorriso no rosto – e me pergunta: “por que os textos que você escreve no site do Jornal são tão cheios de vírgulas, parceiro? Que chatice”. Na hora, apenas rio, mas ele deve saber que ando à procura de um aperfeiçoamento para a escrevinhação cotidiana, afinal a literatura e o jornalismo são coisas mesmo muito distintas, abismo avassalador que me motivou a voltar a este espaço para escrever. Primeiro, vale confessar que estou em crise. Se, dentro de alguns dias, eu não inventar um pseudônimo para mim, terei morte diagnosticada pela inveja que sinto dos grandes escritores e definitivamente nunca mais voltarei a escrever aqueles parágrafos longos que eu adoro, com a técnica do fluxo de consciência, recurso literário que mais aprecio e que consagrou o mestre João e muito mais gente por aí, principalmente porque neste tipo de parágrafo vem uma vírgula atrás da outra e, por incrível que pareça, tudo o que é registrado normalmente tem c...

COMO???

Como pensar e refletir se o gabarito do concurso de ontem não saiu? Como descansar e viajar no conhecimento lúdico se há dois certames nos próximos finais de semanas? Como deglutir metafísica e se embeber de Nietszche se existem dívidas para serem pagas? Como sorrir com a ironia fina de Machado se é preciso garantir o sorriso dos pequenos? Como surpreender-se com as fantásticas criações de Saramago e Marquez se o dia-a-dia nos dá supresas que nos estafam? Como admirar os perfis criados por Ubaldo se não é possível reconhecer o perfil do cônjuge que está ao lado? Como responder a tantos ‘comos’ se não temos tempo para analisarmos estas interrogações? Parece que a resposta está implícita, como sempre. Surge nas entrelinhas. Na verdade, estava na linha anterior. O tempo. Sempre ele aparece. Sempre ele incomoda, abespinha. É óbvio que Kant precisou de tempo livre - e ponha livre nisso- para produzir suas críticas à razão. Os gregos foram proeminentes em muitas artes, justamente porque ti...

Março que me perdoe

Sim, fevereiro tem muito charme, sim, senhora. Tem ou não tem? Tem, tem sim, coisa feia seria dizer que não. Seria até aceitável, vá lá, se argumentasse que os seus onze semelhantes no que diz respeito ao tempo não exercem transformações tão profundas no calendário como ele o faz, que não furtam igualmente em seus percursos finais por durante três anos seguidos os aniversários dos outros e ainda que toda essa pantomima por ele provocada seria vilania de sua parte, ok, ok, mas veja bem, my lady, brisas serenas e animosidades como as de fevereiro não há, a dona há de comigo concordar. Abril, por exemplo, abril é um mês devastador: carrega o outono até junho, traz as chuvas, derruba barracos, desabriga semelhantes nossos, permite languidamente que nos sejam aviltantes a mercantilização opressiva da páscoa e ainda por cima, ainda por cima traz muita angústia, sim, traz, a senhora sabe muito bem que traz, ou vai dizer agora que nunca pensou em ver os seus 30 dias correndo com maior ligei...