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Carta ao meu filho


Vendo assim tão de perto, não dá para medir quantos são os matizes que colorem os olhos da sua futura mãe, filho, mas posso lhe assegurar que, se eles forem ajuntados ao esverdeamento predominante dos meus, você chegará a esse mundo muito mais deslumbrante do que deslumbrado, íris tão hibridizadas como as que antevejo em seu olhar ainda por aqui não testemunhei, e sobre isso lhe dou igualmente a minha palavra.
Deve estar a se perguntar que assanhamento indisfarçado é esse de minha parte, broto, e me parecerá esperto também se, levado pela presunção, você chegar à consequente conclusão de que há mesmo neste mundo uma cocota que justifique todo esse meu esforço em vida, sendo ela portadora de reciprocidade nos gestos e no amor, inteiramente qualificada a lhe carregar nos braços do instante do seu primeiro ingresso de ar no peito até o terceiro ou o quarto ano da infância, e, ainda por cima, apaixonada como todas as verdadeiras mães costumam ser pelos seus filhos.
Não ignore, porém, os tempos difíceis que atravessamos e ainda os que virão, o que, por conseguinte, adiarão a sua chegada. Não ignore o pai claudicante que a vida, o destino, os deuses ou os números colocaram em seu caminho e, numa primeira demonstração da cumplicidade que espero exista doravante entre nós, respeite essa minha fase sem dinheiro, sem sofá e sem todas as outras condições minimamente necessárias para que eu me sinta seguro para, enfim, lhe trazer ao mundo e lhe apresentar pessoalmente ao Vitória e às outras maravilhas deste nosso universo.
Não se queixe tanto assim de ser, por enquanto, uma não matéria, pois, antes muitíssimo pelo contrário, desprovidos de qualquer coisa somos nós, os encarnados, que cada vez mais temos perdido os rumos e, veja você, cedido até mesmo à pecaminosa tentação de viver duas vidas, uma andante e outra no facebook.
O que quero lhe dizer é que, vindo para cá, daremos alguns passeios, você aprenderá alguns palavrões, conhecerá a internet, tomará parte da falsidade humana e nada mais além disso, porque, no mundo em que o seu papai habita quase tudo é insípido, tirante apenas o que, de modo resumido, tem por detrás de cada composição o sabor do sal ou do açúcar.
Mas, como imagino que deva estar bastante ocupado aí no poleiro, não tomarei muito mais o seu tempo. Não se preocupe: teremos mais papo de homem para homem adiante. Antes, só para que se prepare melhor para o mundo que o aguarda, vou lhe deixar a par de um acontecimento gritante: aqui na Bahia, cerca de 200 municípios estão assolados por uma seca como nunca antes fora registrada. Pouco se lê, se vê ou se ouve sobre isso nos jornais, mas um deles chegou a destacar que, por conta desta intempérie, o famigerado São João terá prejuízos alarmantes. Mas ainda não dou conta de lhe dizer se eles sabem que, neste contexto, tem gente a morrer desgraçadamente de sede.

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