- Vem já almoçar, menino!
- Já vou, mainha.
- Sai desse computador e vem logo. Sua comida já
está na mesa e eu e seu pai estamos te esperando.
- Eu sei. Já estou indo.
- Aproveita e chama a sua irmã.
- Vanessa, mainha tá chamando pra almoçar!
- Diga a ela que eu já vou, só vou terminar de
falar aqui no celular.
- Ouviu, mainha? Ela tá no telefone.
- Ouvi, sim. Mas não demorem, porque a comida está
esfriando.
- Todo dia você chama os meninos e eles fazem isso:
enrolam até a gente desistir.
- É, Zé, mas fazer o que, né? A gente tá fazendo
nossa parte.
- É, eu sei, mas eles não obedecem.
- Porque será que é tão difícil pra eles almoçarem
com a gente?
- Ah, não sei, meu bem. Devem ser essas tecnologias
todas aí. Quando não estão na internet, estão no telefone ou grudados na
televisão.
- Eu acho que eles pensam que almoçar junto é coisa
antiga, coisa de velho.
- Ou talvez tenham enjoado das nossas conversas. Se
não for isso, já devem se achar bons em tudo.
- É, concordo! Vanessa! Fabrício! Não vou falar de
novo! Venham almoçar!
- Pronto, mãe. Já terminei de falar com Robertinho:
mais tarde ele vem me buscar pra gente ir no cinema.
- E você pediu a quem pra ir?
- Eu ia pedir agora, mainha.
- Depois a gente conversa sobre isso. Cadê seu
irmão?!
- Tá vindo.
- Pai, tá passando os gols da rodada. Venha ver!
- É mesmo, filho? Peraí, amor, que eu vou ver os
gols aqui, rapidinho.
- Era só o que faltava. Quando você vem, seu pai
sai.
- Mãe, o telefone tá tocando. Deve ser pra você.
- Tá bom, deixe eu ver quem é.
- Golaço de Neymar, filho. Vamos pra mesa almoçar
agora, porque sua mãe já vai reclamar.
- Tá certo.
- Oxe! Cadê sua mãe, Vanessa?!
- Tá no telefone. Acho que é tia Francisca. Mainha
já tá retada ali na linha.
- Quanta dificuldade pra almoçar nessa casa! Quem
foi no telefone, meu bem?
- Foi minha irmã Francisca!
- E ela disse o que pra você ter ficado assim com
essa cara?
- Disse que viu Fabrício, ontem, roubando dinheiro
de uma senhora na rua.
- Que história é essa, rapaz?!
- Não, pai, é que...
- Que o quê? Você é algum marginal, Fabrício? A
gente deixa de te dar alguma coisa aqui dentro dessa casa?!
- Não, pai, mas...
- Mas uma porra! Seu moleque!
- Ô, pai, não fale assim com ele, não...
- Até você tá defendendo ele, Vanessa?! Você é
cúmplice dele?!
- Não chore, não, minha filha. Mas seu pai está
certo mesmo.
- E você tá chorando porque, menina?! Pegue o
celular dela ali, Ana, pra gente ver o que tem nele, porque ela nunca desgruda
dele.
- Não! Não! Não!
- Acabou de chegar uma mensagem do namorado dela
aqui, Zé.
- Deixe eu ler: “meu
amor estou muinto feliz com o nosso beber lindo que estar fasendo dois meses
hoje. Estou ancioso pra te ver pra gente ir no medico hoje ver como estar nossa
criançinha tomara que esteja tudo bem. Bjos te amo muinto! “
- Minha filha! Você tá grávida?!
- Meu Deus do céu, o que foi que eu fiz?! Você já
sabia de tudo né, Fabrício?! Aliás, vocês dois sabem de tudo um do outro.
Enquanto nós, que somos seus pais, não sabemos de porra nenhuma!
- Calma, Zé!
- Calma um caralho! Olha nossa família! Olha pra
ele, olha pra ela! A gente deu educação a esses meninos, Ana! A gente ensinou o
caminho certo! E olha como eles retribuem! Criamos um ladrãozinho de 17 e uma mãe
de família de 15!
- Êpa! Não fale assim dos meninos, porque a culpa
também é sua!
- Culpa minha?!
- Sim, culpa sua! Você nunca teve tempo pros seus
filhos, nunca acompanhou os estudos deles, nunca levou eles pra um jogo ou pro
teatro, nunca comprou livros pra eles, nunca mais almoçou em casa!
- Você quer dizer, então, que eles se tornaram isso
que são por culpa minha? Por causa de uns simples almoços que faltei?
- Claro que sim! Você deixou a internet, a
televisão, e a rua educarem nossos filhos! Você parou de cobrar as notas deles,
parou de elogiar e de reprimir quando faziam coisa errada.
- E você fez o que pra melhorar isso? Fez o que pra
me ajudar?
- Dei amor.
O diálogo acima inventado não
expressa fielmente a realidade das famílias brasileiras, mas, mesmo com todo
exagero linguístico – na utilização de inúmeros palavrões – consegue se
aproximar de um grande problema existente em nossos lares: o abismo na
comunicação entre pais e filhos. Essa grande distância – não física – entre os
membros da família não pode ser creditada apenas à ausência de reunião na hora
do almoço, de forma organizada e pontual, mas também a todas as atividades que reúnam
a todos e não sejam utilizadas como meio de aprendizagem e de diálogo. A
comilança ao meio dia é apenas bom exemplo de atividade costumeira que exerce
papel fundamental na formação da família e na passagem de valores para os
filhos. O café da manhã, o jantar, ou a
reunião pura e simples tem o mesmo efeito, pois, tornando tradicionais essas
atividades, valores são enraizados, sentimentos são compreendidos e problemas
são discutidos e resolvidos por todos. O almoço deve ser a hora em que o pai
deve olhar firmemente nos olhos do filho e questioná-lo sobre o boletim; deve
ser a hora de a mãe tomar consciência dos anseios que surgem na filha com o
passar da idade e com o crescer do seu corpo; deve ser o momento em que o filho
é duramente reprimido por falar um palavrão à mesa e aprender que não deve mais
fazê-lo; deve ser a hora de perguntar o que a filha quer ser quando crescer e,
se a resposta não estiver muito clara, tentar ajudá-la a vislumbrar um futuro
interessante.
Com uma simulação de bate-papo
simples é possível perceber que estas dificuldades não estão à milhas de
distância de nós, e que, com surpresa, poderemos estar envoltos nessa própria
situação, sendo, ao mesmo tempo, sujeito (observador) e objeto (questão a ser
estudada) do mesmo fenômeno. Famílias realmente se desestruturam por falta de diálogo
e confiança. Filhos perdem o rumo; pais perdem a esperança. Esse assunto –
aparentemente tosco ou besta – foi objeto de estudo de alunos da Universidade
de San Diego, na Califórnia (Estados Unidos), no início do ano passado. Como
resultado, os estudantes descobriram que uma refeição diária na companhia dos
familiares pode reduzir em até 80% as chances de os filhos se envolverem com
drogas, prostituição ou atos de violência. Esta pesquisa realizada por estes
cientistas sociais americanos serviu como ponto de chegada deste texto: o
pensamento em escrever sobre a importância do almoço em família não se deu pelo
conhecimento desta reportagem, mas, de forma gratificante, foi possível
perceber que, ao findar o diálogo inicial deste escrito e ao pesquisar sobre o
tema em questão – a título de curiosidade -, já havia sido publicado algo desta
importância e que remonta à explicação da degenerescência familiar.
GF
Comentários
RF
Como sempre, falando com propriedade sobre um determinado tema.
E, desta feita, nos trouxe as consequências da falta de dialógo na família, utilizando o almoço, como um bom parâmentro para todo a sua argumentação.
Parabéns e obrigado pelo texto.
Abraço, pcro.
Deixa eu ir, pois já estão me esperando para almoçar, rsrs.