Crônica de Armando Oliveira
A cobrança é intensa, mas sua possibilidade de quitação fica cada vez mais tão remota quanto o da nossa dívida externa.
Pedem-me um livro, se possível pinçado de quinze anos de escrivinhações diárias nesta imorata folha.
Matéria, não falta, reconheço, a maioria mera sucata do cotidiano, assuntos que se perderam na voragem do tempo, coisas mais minhas que do tolerante leitorado.
Por sinal, acho que escrevo mais pra mim do que pros outros, daí esta relutância em encadernar vivências, anseios e frustrações.
Dia desses dei uma relida em vários recortes, generosamente colecionados por mãos amigas e muito queridas, encontrando dificuldades em admitir sua autoria.
Tive fases de romantismo piegas, ira mal contida, descrença assumida, ironia cruel, como juntar tudo isso numa obra que se pretende coerente?
A quem interessaria bisbilhotar meus bons e maus humores, essa vocação de mutante potencial, essa vontade de ficar, mas tendo que ir embora (e vice-versa), essa procura vã da harmonia total entre o desejado e o possível?
Francamente, não sei.
Às vezes me acho ótimo (perdão, leitores), não raro me julgo péssimo, eventuais manifestações de terceiros me deixam envaidecido, sem me fazer totalmente a cabeça.
Nunca consegui rotular tanta escrevinhação como artigo de consumo, daí, quem sabe, minha dificuldade em negociá-la bem.
Pode parecer falsa modéstia - forma sutil de vaidade -, porém a ideia de vir a comprar um livro "meu" foge a qualquer cogitação.
Se, como pai da criança, reluto em abraçá-la, como ter a veleidade de vê-la amada por estranhos?
Quando alguém a coloca nas nuvens, embora a referência me acaricie o ego, fico a imaginar o que pode existir por trás do elogio.
Admito ter tocado fundo certas pessoas muito especiais, mas não transfiro tal especialidade ao instrumento da admiração.
Rigor excessivo comigo mesmo, talvez, ou simples insegurança, como diria um psicanalista de plantão.
Invejo os que vão à luta, originais sob o sovaco, forçação de barra sobre os editores, "lobby" entre os amigos da imprensa, o sucesso literário depende tanto da inspiração quanto da transpiração.
O ter uma veneração quase mística pela boa literatura, também atrapalha um pouco.
Tem umas feras aí que me desestimulam a alcançá-las, nem pensar jogar no terceiro time, só para estar no jogo, esbarra na minha ausência de espírito olímpico.
Foi uma onda dessas que me cortou as pretensões musicais, ou Baden Powell com três meses de aprendizado, ou viola largada no canto.
Nada menos do que o máximo, e olhem que não cultivo qualquer tipo de megalomania, fica difícil explicar.
Parece até que estou, mais uma vez, me desculpando pela esterilidade literária, o prazer independe da procriação, mas em matéria de livro a vasectomia é irreversível.
Freudianamente falando, esta preferência pelos textos curtos e descartáveis certamente sintetiza a afetividade capaz de se repartir generosamente, com eventuais variações de intensidade.
Livro é igualzinho a casamento: depois da "noite de autógrafos", há que se arcar com toda uma possibilidade de encalhe nas prateleiras da vida.
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