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Março que me perdoe

Sim, fevereiro tem muito charme, sim, senhora. Tem ou não tem? Tem, tem sim, coisa feia seria dizer que não. Seria até aceitável, vá lá, se argumentasse que os seus onze semelhantes no que diz respeito ao tempo não exercem transformações tão profundas no calendário como ele o faz, que não furtam igualmente em seus percursos finais por durante três anos seguidos os aniversários dos outros e ainda que toda essa pantomima por ele provocada seria vilania de sua parte, ok, ok, mas veja bem, my lady, brisas serenas e animosidades como as de fevereiro não há, a dona há de comigo concordar.

Abril, por exemplo, abril é um mês devastador: carrega o outono até junho, traz as chuvas, derruba barracos, desabriga semelhantes nossos, permite languidamente que nos sejam aviltantes a mercantilização opressiva da páscoa e ainda por cima, ainda por cima traz muita angústia, sim, traz, a senhora sabe muito bem que traz, ou vai dizer agora que nunca pensou em ver os seus 30 dias correndo com maior ligeireza para que se apresentasse com os seus 31 o mês de maio, que, vamos combinar, também não é assim nenhuma flor que se cheire?

O que dizer de março, então? Falta loquacidade para tanto, apesar da proposta para dele mal versar estampada no título, minha senhora, e só de pensar já bate cá uma fadiga retada, só de imaginar, veja você, só de rememorar os marços de antanho levando inteirinhos marés agitadas e todos os verões só para eles, este que é sem dúvidas o mês mais ligeiro de todos, que sai danado por aí abrindo as portas das escolas, reinstalando a ordem, como quem ignora, feito um menino serelepe, que isso aqui é Brasil e que o brasileiro gosta mesmo é da desordem, ora pois, vá interromper o descanso e emborcar as redes dos britânicos, dos americanos, dos nórdicos, dos asiáticos e do baralho a quatro, meu inimigo.

Sim, tudo bem, tudo bem, eu compreendo que talvez não se compreenda assim de imediato em três parágrafos se tratar o canto destas malfadadas não de uma repulsa completa às responsabilidades todas do mês três mas de uma ode ao mês segundo, sobretudo por que se dá esta publicação assim em seu dia vigésimo, como se somente agora algum manjar em sua inextensão eu tivesse encontrado, mas não é bem assim, me compreenda, minha dama. É que hoje é dia especial e somente em fevereiro ele existe, a dona entende o que quero dizer? Hoje é aniversário de gente importante, e gente importante faz a gente grudar a bunda na cadeira que fevereiro esquenta para se dedicar a alguma coisa em sua homenagem escrever. Uma das pessoas que me lê do outro lado da tela sabe que falo tudo o que falo somente por causa dela e com certeza sorriu depois que viu o ponto final desta frase.

Talvez seja daí que venha esse meu pedido de desculpas ao mês subsequente e o meu desejo para que ele tire umas férias, que reflita um pouco e que empreste os seus dias a fevereiro, para somente depois reassumir as suas funções no momento que pertenceria por direito concedido por Cronos ao insosso do abril, com o perdão dos arianos e dos taurinos pela desqualificação empregada. Mas isso já é sabido que é coisa impossível de acontecer, não é mesmo? Ou me dirá a senhora que já se viu neste mundo mês trocar de lugar com mês?

Por isso mesmo é que, nas escassas reuniões com os filósofos do meu convívio, quando conquisto o direito da fala, costumo repetir com leviandade o pensamento de que, quanto mais acreditamos no tempo, mais ainda ele se impõe e nos faz de reféns, melhor mesmo seria jogar fora os relógios e desorganizar um pouco as coisas, não sei, ando meio brigado com o tempo, mas triste mesmo é lembrar que, sempre que reapresento esta consideração, os meus confrades se entreolham e encerram a discussão com assovios. Todavia, bato pé firme e talvez seja mesmo por isso que escrevo este hino a fevereiro, que é assim um mês de muita cumplicidade, sabe?, mês outro nenhum faz o sol distribuir os seus raios luminosos desse jeito, admirado por completo ao me ver acordar às onze e levantar da cama somente às treze, não sei, não sei, com fevereiro desfruto de grande amizade e não quero mesmo que ele passe.

Em junho, por exemplo, que deveria ser um mês mais amistoso do que costuma ser, em que meio mundo de gente se dispõe a reverenciar com datas marcadas santos disso e daquilo, enquanto que eu cá ando com a agenda cheia, pois me são sempre uns tempos de chuvas e de atividades importantes, em que acabo por ceder à necessidade de ser pontual e, mesmo quando não escuto o despertador, levanto para ir ao encontro dos compromissos que me aguardam, mas nisso não dá para me estender, porque essas coisas da mente e do organismo humanos rendem mesmo muito assunto.

Das tragédias que nos sobrevêm com a chegada de agosto eu já não falo: tenho medo. Setembro não tem sentido. Outubro é vagaroso e acaba sempre com o dobro ou mais de dias do que a quantidade impressa nas folhinhas tenta nos fazer acreditar. Novembro sai isento da crítica por que mostra à luz as crias dos amores ardentes de fevereiro, em que pese, para os meus companheiros de reflexão mais conservadores, seja condenável a constatação de que muitos dos acasalamentos geradores destes nascimentos sejam frutos de meros assanhamentos sazonais, que são indiscutivelmente pelas energias metafísicas e pelos temperos do verão estimulados. Dezembro nos é tão falso com toda a sua espiritualidade forjada que não merece muito a minha atenção, aquele hipócrita.

Não sei, não tenho certeza, mas acho que em outros tempos se falava de amor mais abertamente e não se vociferava sem tantas razões assim contra os meses, seres estes tão indefesos e apenas existentes por causa da necessidade humana de pôr controle em tudo. Em aniversários outros, essa mesma humanidade já foi mais pródiga em entregar buquês de flores e em tornar o dia da pessoa festejada muito mais apraz. Com isso - e pelo menos com isso estou certo de que a senhora haverá de anuir -, com isso março não tem nada a ver.

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