Tem um primo que me liga – e registro isso aqui com um sorriso no rosto – e me pergunta: “por que os textos que você escreve no site do Jornal são tão cheios de vírgulas, parceiro? Que chatice”. Na hora, apenas rio, mas ele deve saber que ando à procura de um aperfeiçoamento para a escrevinhação cotidiana, afinal a literatura e o jornalismo são coisas mesmo muito distintas, abismo avassalador que me motivou a voltar a este espaço para escrever.
Primeiro, vale confessar que estou em crise. Se, dentro de alguns dias, eu não inventar um pseudônimo para mim, terei morte diagnosticada pela inveja que sinto dos grandes escritores e definitivamente nunca mais voltarei a escrever aqueles parágrafos longos que eu adoro, com a técnica do fluxo de consciência, recurso literário que mais aprecio e que consagrou o mestre João e muito mais gente por aí, principalmente porque neste tipo de parágrafo vem uma vírgula atrás da outra e, por incrível que pareça, tudo o que é registrado normalmente tem continuidade, cadência, clareza, faz muito sentido, embora quase sempre seja determinante para o abandono do impaciente leitor, que faz pouco caso, acha tudo exagero, vive reclamando da vida e pensa ainda que sofre dos maiores problemas do mundo, quando na verdade quem tem problemas é quem não consegue mais ser criativo e acredita tristemente que já não há mais espaços para inventividade nesta arte milenar, porque nada lhe tira da cabeça que tudo o que se tinha para escrever já foi escrito. Tá bom, tá bom, pode respirar.
Sem mais engodo, quero apenas dizer que, sendo eu, não consigo mais escapar do estilo jornalístico, com a pirâmide invertida e o lead com as suas famigeradas vírgulas quase grudadas umas nas outras a separar o QUÊ - que motiva a notícia - de QUANDO o referido evento noticiado aconteceu, de ONDE ele aconteceu e de POR QUE essa miséria aconteceu. Tem ainda um QUEM, mas nem sempre – anotação minha – ele está presente. Entendeu? Entreguei o segredo: agora, qualquer um brasileiro que acesse esta página, mesmo sem diploma, já sabe como se começa um texto clássico jornalístico e poderá ser jornalista, bastando apenas que saia dizendo coisas menos urgentes mas não menos importantes nos parágrafos subsequentes, sabendo, contudo, que sujeitar-se-á com a nova profissão a viver sem prestígio e sem dinheiro. Antes de se decidir por entrar nessa, sugiro, pense numa desgraça. Pronto. Desgraça assim, no começo da frase, é melhor, porque o D vem em maiúsculo e dimensiona melhor o tamanho da miséria. Desgraça, desgraça, mil vezes desgraça.
Ontem mesmo, ontem eu tentei inventar umas cinco vidas, mas todas sem rodeios, logo, todas sem graça alguma: via-se prontamente que eram personagens insípidas só pelo arriar das malas, já nos primeiros parágrafos. É claro que segurei o “shift”, subi um pouquinho pelos textos com a tecla direcional para cima, apertei concomitantemente a tecla “delete”, depois quase bati com um murro em cima da tecla “enter” e mandei todos eles pros infernos.
A melhor, para não dizer que a quarta-feira foi tão vazia assim, foi uma personagem que tomei emprestada de Carlos Heitor Cony: chamava-se Vera, uma loura que, segundo ele, era um exagero de exuberância no Rio de Janeiro da década de 1960, cunhada de Henrique, um sujeito insignificante que se apaixonou quando a cocota tinha apenas 13 anos. A tarde da sua ausência é um livro que mexe muito comigo e somente ainda não terminei a leitura porque tenho simpatia por Cony e não quero me decepcionar com um muito provável desfecho sem sal e sem açúcar.
Pois, diferentemente da versão do escritor, na minha versão, Vera apareceria na foto e seria ela a única parte da gravura do meu interesse, mas não demorei a desistir de retratá-la, porque me dei conta da minha incapacidade em descrever o modo como, momentos antes de posar na varanda com a imensa família dos Machado Alves, ela se borrara ao tentar se maquiar com um batom grená frente ao espelho. A sua vida sumiu igualmente pela memória do computador, apesar de sabermos todos que não é bem assim, porque nada nesse universo se perde, podendo a minha Vera ser resgatada por qualquer técnico de informática de péssimo gosto literário e com persuasão para me convencer de que a mulher que tentei um dia reinventar poderá ainda dar algum caldo.
Escrevi aqui porque fiquei ocioso durante a aula, essa é que é a verdade. Detesto esse ambiente acadêmico – outra verdade. Estou quase postando este lixo e fechando o computador, ávido por retornar para a casa e tirar mais um cochilo, saboreando antes o macarrão com purê de batata e galinha que mainha fez na noite anterior. Depois, começarei a pensar em nomes como opções para pseudônimos. Tem que ser um nome que tenha personalidade. Tem que ser um cara polêmico, baiano e acre. Poderá ser Eustáquio.
Comentários
Parabéns!
O jornalismo e o ambiente acadêmico costumam engessar o talento de muitos. Cuidado!
O intitulável tem essa função cogente: ser espaço para devaneios metalinguísticos, impedindo que nossa arte se perca em meio à mecanicidade desse mundo pós-moderno.
Grande texto.
Foi um prazer ler e reler.
Obs.: Cony pode ser bom, mas não é único. Larga logo essa 'ausência' porque tem muita coisa boa ainda pra você ler. Nomes como Saramago, Machado, Tolstoi, Dostoiéviski, Victor Hugo, Graciliano, Érico e CIA.
abraço,
MASARACHAMADOGO