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TELA AZUL






Meu recente deslumbramento com a qualidade dos livros de Fernanda Torres permitiu que eu olhasse o livro da Maitê (É duro ser cabra na Etiópia) com olhar caridoso, adquirindo-o para o longínquo voo. A leitura diferente e intrigante, com textos de vários autores desconhecidos, rememorou em mim que o meu prazer de ler sempre foi equivalente ao de escrever. Apesar da voracidade para acabar o livro, a rinite estava atacada. Além disso, os últimos dias haviam sido bem cansativos. Decidi, então, tentar cochilar. Fone no ouvido, voo de cruzeiro. O barulho das crianças no assento de trás não era mais tão perceptível. O avião estava acima da enorme nebulosidade e eu observei a luminosidade variando na asa para avaliar possíveis turbulências. Tudo planejado, era hora de tentar dormir, coisa rara para mim em voos. Entre as variadas cochiladas, a mente tentava conciliar o descanso exigido e a consciência plena da situação. Num dos lampejos, após tornar a fechar os olhos, vi tudo azul. Sim, azul! Como uma tela de computador antigo. Totalmente azul! Diante da tela, comecei um monólogo. Eu não fechei os olhos para dormir? Não deveria ser tela preta? Então, eu morri? Minha consciência cristã me dizia que a vida não acaba com a morte. O meu instinto cético dizia que se a vida acaba com a morte, eu jamais poderia ter ciência de que morri, ora bolas. O fato é que eu podia ter morrido. Já ouvir falar que quando um avião bate numa grande tempestade em alta velocidade, o desfecho é trágico. Mas eu não deveria sentir dor, terror e angústia antes de morrer? Ou foi tudo tão rápido que nem deu tempo de acordar? Lembrei que o governador estava sentado quatro cadeiras na minha frente. E para que lembrei isso nessa sensação de morto? Imaginei a notícia nos jornais e o foco todo na morte político. Eu ia ser apenas mais um número nas estatísticas de acidentes aéreos. Só isso? Não, sei que não, tela azul. Minha esposa, com nossa filha em seu ventre, ficaria desesperada. Minha família inteira, inconsolável. Colegas e amigos, estarrecidos. Mas sei que, apesar dos defeitos (que sobejam), minhas virtudes e conquistas seriam exaltadas. Mas eu comecei a duvidar que tinha morrido. A tela azul persistia. Lembrei que forçar as vistas com os olhos fechados possibilita ver uma mistura de cores. Gostava de brincar com isso. Fiz um esforço comprimido as pálpebras, não obtido êxito. A tela azul continuava. Relaxei um pouco e pensei que ela queria me dizer algo. Mas eu não gosto de simbolismos! Sem perceber, surgiu no alto da tela azul um traço preto piscando. Era um cursor. Um cursor! Eu estava eufórico. Ah, a tela azul quer que eu digite... bebidas, Senhor? Acordei com a pergunta da comissária. Coca-Cola, respondi no automático. Eu estava vivo, acordado e não tinha solucionado plenamente o mistério da tela azul. Lembrei o livro da Maitê (aquela capa rosa gritava nas minhas retinas). Decidi continuar a leitura e não mais cochilar. Na sequência das crônicas, já passando do meio do livro, surge uma página azul. Apesar de não ser completamente azul, pois havia branco no meio, a sensação de déjà vu foi inevitável. Consegui ler acima, na tarja azul: INSPIRE-SE. Eu podia escrever na tela azul! Lá no âmago do meu ser, era o que eu queria: voltar a escrever! A tela azul se desfez, ficou roxa, rosa e o melhor: impregnada com meus vocábulos escritos à mão. Obrigado, Maitê, eu voltei a escrever!

Comentários

JOCIMAR FRANÇA disse…
Meu amigo Heitor sempre pintou esse quadro: Morrer num avião cheio de políticos, seríamos números, quase sem nomes. O comentário acontecia quando a turbulência assustava...Quanto à tela azul, que bom que foi respingada com o seu vasto vocabulário. Seja bem vindo de volta.
Rafael França disse…
Que você volte com tudo, amigo... Belo texto.

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