Incrível como só percebi o seu olhar de
admiração após a bola ter balançado as redes, no ângulo superior direito do
goleiro, fruto de um drible entre dois zagueiros e de um chute bem colocado,
que o arqueiro teve o desprazer de receber de mim. Naquele beco estreito,
colado à trave, defronte ao muro do Shopping Papagaio, ela me avistou pela
primeira vez. No mesmo instante em que a bola estufava as redes, descendo, após
atingir o seu ponto mais alto, descobria-se o rosto daquela bela mulher, dos
pés à cabeça, como se a esfera a tivesse descortinado, visto que se encontrava
exatamente atrás das traves, protegida pelo alambrado. Enquanto eufóricos me
abraçavam os companheiros de time, comemorando a pintura de gol que eu fiz,
fiquei extasiado, anestesiado com aquele olhar que me encarava fora de campo.
Acenei com a mão para cumprimentá-la e fui correspondido com uma piscada do seu
olho esquerdo, enobrecido por um tom castanho claro, daquele que faz paralisar
qualquer pessoa que se atreva a fitá-lo por mais de cinco segundos. Apesar da
distância – estava em campo jogando, enquanto ela estava me assistindo do lado
de fora -, fui vítima de tal feitiço. Fixei meus olhos nos seus e, desde então,
não acertei mais nada no jogo: a bola passava por baixo das minhas pernas; já
não conseguia mais marcar nenhum adversário; chutei todas as bolas para longe
do gol quando tive oportunidade e errei passes cruciais que geraram jogadas de
contra-ataque do time adversário. Por não mais conseguir recobrar a concentração
necessária a um atleta em competição, pedi para sair da partida, antes que os
adversários fizessem o sétimo gol.
Juçara estava a me aguardar. Sorrindo
quase que incontrolavelmente, veio em minha direção e se apresentou. Só neste
instante conheci o seu nome. Disse-me que o gol que fiz a havia atraído para me
ver jogar e me conhecer. Impressionou-se e ficou completamente feliz com o fato
de ter me desconcertado após me lançar aquele fatídico olhar. Havia um quê de
mistério em suas expressões faciais, um sorriso muito fácil, mas que, ao mesmo
tempo, não demonstrava abertura suficiente para uma aproximação imediata. Conversamos
por alguns minutos e marcamos um encontro para o dia seguinte.
Encontramo-nos num lugar especial. Para
ela, não havia nenhum outro ambiente tão propício quanto aquele para degustar
uma agradável companhia. Saboreamos nossas afinidades e nossos sorrisos juntos,
enquanto experimentávamos o exótico sorvete de kiwi com cupuaçu, que, segundo
ela, era servido apenas ali, na melhor sorveteria do mundo: A Sorveteria da
Ribeira. Achei engraçada a forma como teceu elogios ao estabelecimento,
narrando toda a história da sua fundação, desde 1931, até os dias atuais. E
continuou prosseguindo em suas explicações e em seu acentuado orgulho pela
região, citando de Gilberto Gil a Caetano dentre as grandes celebridades que
não vivem sem um sorvetinho dali. Mencionou outras personalidades,
internacionais inclusive, e só não deu prosseguimento por que a interrompi,
mudando de assunto bruscamente e já apontando para os barcos azuis que,
ancorados, flutuavam no mar defronte à Sorveteria. De chofre, e parecendo
pressentir a minha manobra, desatou-se em elogiar o inventor da travessia
marítima Ribeira-Plataforma, como sendo o mais importante meio de transporte da
cidade. Discorreu sobre o preço acessível da travessia, a beleza dos barcos, a
qualidade da água e a oportunidade que era dada aos Plataformenses – palavras
dela – de conhecerem a Ribeira a preço reles e em condições turísticas.
O infortúnio continuava a cada novo
encontro. Longe de ser uma mulher desprezível; antes pelo contrário. Era linda,
dona de uma beleza que irradiava vivacidade, alegria e feminilidade. Tinha
ainda os mesmos gestos sutis de sua tenra idade. O mesmo sorriso contagiante de
uma criança brincalhona. Era próprio de sua natureza também, além de tais
características infantis, o jeito irascível de mulher decidida, o corpo
escultural de uma modelo e um olhar sedutor, típico das mulheres que atraem
quando e como querem. Afinal, morena como era, encaracolados como eram os seus
cabelos, não havia espaço para qualquer descrédito em sua beleza. Mas havia
nela algo inquebrantável, que só percebi à medida em que multiplicávamos os
nossos encontros.
O sentimento que Juçara sentia pelo
bairro da Ribeira era incomparavelmente maior ao que nutria pela cidade, pelo
estado ou pelo país em que vivia. E era exatamente essa compaixão que a fazia
enxergar determinadas coisas de maneira exagerada. Filha de pais bairristas
tornou-se desdenhosa com os outros lugares da cidade assim que soube a origem
do seu nome. Nunca esquecera as palavras que o seu pai lhe dissera quando
criança: “Filhinha, tens o nome de uma heroína. Cuida-te para que faças jus ao
teu nome. Jussara foi uma das principais fundadoras do nosso bairro, juntamente
com o seu esposo, o nosso ilustríssimo Alcebíades Barata. Juntos, entulharam
boa parte das ruas da Ribeira que, há muito tempo, quando ainda existiam casas
de palafitas, eram tomadas por enormes porções de água. Lutaram pelo primeiro
ponto de ônibus do bairro – conseguido num 11 de maio de um ano desconhecido -,
batalharam por melhores condições de vida, por pavimentação e saneamento básico.
Participaram, em 25 de dezembro, de uma solenidade que deu àquelas terras
baixas das margens do rio a alcunha de Ribeira. Os nossos heróis e essas datas se
transformaram, cada um, em nomes de ruas aqui do nosso lindo bairro, filhinha”.
Juçara nunca se perguntou se essa história era verídica, ou se havia de fato
como comprová-la. Não se importava com isso. Por mais que parecesse uma lenda,
ela adotava o conto como real e adorava viver assim.
Enquanto caminhávamos do Largo do
Papagaio à Rua Porto dos Tainheiros, passeio que havíamos planejado fazer,
Juçara me contava sobre a importância da Ribeira para a cidade de Salvador. E
falava essas coisas de modo natural, como se tudo que dissesse fizesse o maior
sentido, e que qualquer discordância do seu modo de pensar merecesse ser
repreendido no ato. Disse-me que em qualquer lugar da cidade havia um ônibus
para a Ribeira. E mais: dizia que a Ribeira era especial, porque quem deste
transporte se utilizasse, teria intuito de ir exatamente para lá, pois aquele
era um bairro-fim, não uma mera passagem para se dirigir a outros lugares. Após
cada argumentação, que julgava ser infalível para comprovar a sua tese, ela
parava, me olhava e fazia uma cara de quem perguntava: “você não acha que é exatamente
assim como estou dizendo?”. E quanto mais falava bem do seu lugar, menos rápido
andava. E outras ideias lhe roubavam o pensamento. Logo após a teoria do
ônibus, me veio com a da praia. Nesta, afirmava
que águas de verdade são aquelas que, quando muitas, proporcionam o banho, o
frescor e o bem-estar, mas, quando poucas, possibilitam a pescaria, a coleta de
mariscos e outras iguarias do mar para o morador que tão bem cuida de sua
própria terra. Como se não bastasse tal alegação, acrescentava que o melhor
campeonato de futebol de areia acontecia por ali, aos domingos, por volta das
seis horas da manhã. Segundo ela, o campeonato era tão respeitado, que até os
próprios donos de barracas e mesas, que vendiam suas cervejas na areia, desde
cedo, ávidos pelo lucro proveniente do sol escaldante da Cidade Baixa,
assistiam, empolgados, aos jogos e não se importavam em perder quase duas horas
de trabalho, devido à ocupação do espaço pelos jogadores. Findo o passeio,
fiquei com a impressão de que já conhecia aquele bairro de uma ponta a outra,
sem ao menos tê-lo percorrido por completo.
Juçara sabia exatamente como não
confundir-se entre a Ribeira e a Massaranduba, tinha a noção exata do limite
que separava o seu bairro do Uruguai, do Bonfim e do Caminho de Areia. Simplesmente odiava quem dizia viver na
Ribeira, quando, na verdade, morava numa rua qualquer da Massaranduba. Não dava
importância a quem dizia que a sua praia era imprópria para banho, ou que, em
tempos de chuva, o seu bairro se tornava um dos mais alagados da cidade. Desfez
amizades, sem o pesar da consciência, com conhecidos que preferiram se mudar
dali para lugares não muito longínquos. Dissera-me, certa vez, que todos os
seus antigos namorados foram jovens ribeirinhos. Quanto menos amavam a sua
terra, menos ela os amava.
Quando, após anos juntos, eu te pronunciei
que não havia mais como continuar o nosso relacionamento, ela me disse: “Vai,
vai embora! Você não me entende! Aliás, ninguém me entende. Ninguém sente a
brisa da Ribeira como eu sinto. Ninguém ama tanto esses contornos como eu.
Ninguém assiste tantos jogos no Campo do Lasca como eu assisto. Pode ir embora!
Você não sabe o que é chorar de emoção ao ver a sua terra adorada do alto de um
avião. Não sabe o que é se banhar em águas mornas, em pleno meio-dia, e voltar
para casa com a sensação de ter rejuvenescido a alma. Não conhece a emoção que
pulsa no coração quando, em volta de uma viagem pelo mar, se avista o lugar que
se ama. Sei que me tens por louca, ou desvairada, mas, o que sinto por este
espaço, você não conseguirá descrever e nem compreender a intensidade de
tamanha emoção. Amo a Ribeira como a mãe ama um filho. Amo esta ponta do mapa
de Salvador. Amo essa gente, essas ruas, esses costumes. Sei que vai embora
daqui, mas também tenho a certeza de que irá guardar cada cheiro, cada
sensação, cada lugar e cada gesto que você percebeu aqui. Esse lugar jamais
sairá de dentro de você. E é assim que deverá ser. Só assim você irá perceber
que tudo o que eu te disse não são devaneios meus, mas percepções. Percepções
de quem abre o coração para o amor à terra que tão bem o acolheu. Quando você
estiver longe daqui, vai entender o que te digo. Vai sentir falta desse vento,
dessa sombra e até mesmo dessa algazarra que encontramos nos finais de semana.
Você vai se lembrar de como era bom correr na praia à noite, andar de bicicleta
de manhã cedo e almoçar aquela moqueca de camarão em um de nossos restaurantes.
Sei que sentirá falta deste pedaço de Brasil. Eu poderia aceitar até uma
traição sua, desde que fosse com uma ribeirinha. Mas isso não. Abandonar o
nosso lugar já é demais. Vai, vai embora! Você não sabe amar! Achei que o nosso
sentimento fosse como o das pinaúnas para com os pés dos nossos banhistas. Mas
não! Lembre-se de tudo o que te disse e depois se questione por que você sente
algo tão forte quando vê um letreiro de ônibus com o nome deste bairro”. Após aquele longo discurso, percebi que as
suas palavras incutiram em mim a certeza de que todo aquele sentimento pela
Ribeira jamais me deixariam, onde quer que eu estivesse. Ela parecia estar mesmo certa, com a exceção
de seus exageros: amor de verdade é aquele à beira do rio. Que falta me faz a Ribeira!
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Tiago França