Rafael França
Quando, há dois anos, André Uzêda, este jovem e já notável jornalista baiano e também um grande amigo, surgiu ligeiro, apesar de insuspeito, diante da minha bancada na Redação, desconfiei de imediato que ele conseguira com alguém o endereço eletrônico do meu ídolo. Ao me confirmar a adivinhação, não sei se notou que não registrei o email do escritor em qualquer que fosse o suporte: havia um lugar já preparado na memória para guardar aquele portento. Como demorei a falar ao escrevinhador, depois de um tempo anotei aquele presente em algum arquivo de texto, e passei cerca de dois meses conferindo a sua integridade, temeroso por constatar um furto ou qualquer sumiço de um daqueles caractéres, meditando ao mesmo tempo sobre quais palavras escolheria para lhe falar uma primeira vez. Ensejado por uma enfermidade do também escritor Luís Fernando Veríssimo, em novembro de 2012, arrisquei uma mensagem ao meu guru dizendo que temia pela morte dele e que, por isso, não mais adiaria a declaração derramada de fã que ele leria logo mais adiante, no corpo do mesmo email. Recebi uma resposta amistosa que confirmou a humildade antes por outrém tão alardeada a respeito do meu interlocutor. "Obrigado pelos comentários sobre meus livros, todos eles muito envaidecedores. Mas não me acho tão importante assim", escreveu-me. Daí em diante, enchi a caixa de entrada do email dele com mais elogios, com perguntas e com provocações. Encarnei um chato típico e contei aos conhecidos, com uma convicção e um orgulho juvenis, que era amigo de João Ubaldo Ribeiro. Espalhei por aí uma certa Ubaldomania e hoje pela manhã, para a minha completa paralisação, fui bombardeado pela notícia que amigos e familiares, todos conhecedores da minha admiração, me traziam tão cuidadosa e solenemente. Uzêda me disse que agora teremos uma lacuna intelectual que jamais será substituída. Vitor Villar, outro amigo e também um grande jornalista, bradou pela decretação imediata de um luto universal. Meu pai me ligou e me ajudou a chorar. Meu primo Everton narrou ao vivo, por meio do moderníssimo Whats App, o modo como o seu professor de Português se perdeu durante a aula e passou a falar de Ubaldo. Sabiamente, Tiago França disse que o legado dele ficará e que a sua obra voltará a fervilhar. Minha mãe e os meus irmãos, que muito já me viram parado diante do Youtube para rever entrevistas e aparições televisivas do itaparicano, lamentam como se tivéssemos perdido uma pessoa muito próxima, de fato. E, a essa altura, a pouco mais de uma hora do início do seu velório na Academia Brasileira de Letras, enquanto não sei direito o que escrever, paro diante da Globo News, que volta e meia entra com depoimentos ao vivo sobre o cara que, involuntariamente, por meio sobretudo dos consagrados Sargento Getúlio e Viva o Povo Brasileiro, me ensinou a ter coragem para escrever. Há poucos minutos, Ignácio de Loyola Brandão declarou que Ubaldo é o mais brasileiro dos escritores brasileiros. Um cidadão preocupado em plasmar a nossa identidade. Os consagrados Zuenir Ventura, Veríssimo e Carlos Heitor Cony também depuseram. Não acerto mais o que falar, mas, com o secreto e ao mesmo tempo declarado sentimento de amigo, vou continuar a propagandear sobre a obra ubaldiana. João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro nasceu a 23 de janeiro de 1941; aprendeu a ler e a escrever por causa do rigor do seu pai; iniciou-se nas letras após se encantar por Monteiro Lobato; vestiu-se de mulher em carnavais; levou moças para ver o pôr do sol na Lagoa do Abaeté; recitou poetas na frente da antiga Livraria Civilização Brasileira; mentiu para os mais jovens; leu Sartre; andou com pintores, escultores, mágicos de rua, stalinistas e trotskistas; foi muito amigo dos amigos; torcedor do Vitória e do Vasco; formou-se em Direito; meteu-se em expedições de pesca; pesquisou sobre a vida; registrou científicamente o nome de um protozoário; participou da primeira eleição municipal da Ilha de Itaparica; orgulhou-se por entrever o travessão nos discursos orais do seu pai; rodou o mundo todo, aprendeu a falar e a escrever em alemão, em espanhol e em inglês, mas manteve a sua baianidade; não conseguiu ser comunista; tem a sua obra premiada em todo o mundo; celebrizou Itaparica e engrandeceu ainda mais a Bahia; convidou-me a visitá-lo em Itaparica; surpreendeu-me com emails que não apenas respondiam ao que eu escrevia; confessou-me estar escrevendo um romance; cumprimentou-me fraternalmente quando me reconheceu na Bienal do Livro da Bahia; é baiano, acre, polifônico, barítono, meu amigo, meu ídolo e se iniciou na imortalidade neste 18 de julho de 2014.
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CM