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Sábado

O poeta flana pela cidade. Flanava, minha senhora, flanava; hoje não mais: ele vive enclausulado, ingere comida industrializada, arrota horrendamente, confere continuamente o status do seu Facebook e se diverte com a tevê; quando, enfim, se descobre solitário, desenvolve amor por uma palavra insólita, protege-a no pensamento, busca pelo seu inteiro significado no dicionário online, faz dela o centro do mundo e só então se senta para escrever. Já não gosta de rimas, porém, e muito pouco entende das métricas tradicionais, quiçá do que teria sido o barroco ou qualquer outro movimento literário impregnado de algum sentido. É bem verdade que ainda carregue na caixola um compêndio, mas em seu imaginário sobrevivem somente anotações esparsas, coisas ditas em Seriados americanos imiscuídas a trechos de leituras longínquas, tenham sido esses trechos saídos de James Joyce, tenham sido trechos com o tempo obscurecidos pela hermética sintaxe de um escritor angolano ou até mesmo sejam trechos retirados de uma letra bonitinha de uma frase empolada de um cidadão cosmopolita qualquer que tenha sido meteoricamente promovido a best-seller. Inconscientemente, segue o poeta do nosso tempo reinventando uma nobre arte. E assim, com os olhos fixados no gelo cujo esmorecimento ajuda a descolorir o que sobra no fundo do copo de uma dose de whisky, segue também a afundar a sua imaginação em questões mundiais cada vez mais proeminentes, reflexões que intercala com o seu idílico estudo sobre a formação e o desenvolvimento dos vértices feminis que as calças jeans mais modernas têm ajudado a rabiscar. Afoga-se ainda, pois, por demais nesse interesse o poeta, e por isso, portanto, ainda está ele entre nós, mesmo que já não morra de fome. Prova-nos a cada dia o poeta ser mesmo imortal.

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