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Do diário de um cinegrafista

Que seja uma tarde de ventos fortes. Isso envolve toda a complexidade da natureza, mas, ante a minha causa, não é pedir muito. Nesse curto tempo de tácita convivência, eu poderia forçar um derramamento de café, mas aí não haveria espontaneidade na minha face ao executar os gestos paliativos que sucederiam o falso deslize. Uns ventos fortes tá bom. Quero que faça apenas ventania, pois assim ela muito se verá em dificuldades, deixará transparecer o seu nervosismo com aquele seu balançar de pernas e certamente me chamará para lhe retocar os cabelos, convocação à qual terei o dever e o prazer de prontamente atender, pois há muito já anseio por isso, e se a externa que gravaremos haverá de ser em um dos pontos mais altos da cidade é porque é um sinal do destino e porque será mesmo o meu dia, a geografia ensina desde sempre que no alto há maior circulação de ar, e então haverá mesmo de ser este o dia em que eu finalmente tocarei a sua composição física. E se escrevo em diário essas confissões em lugar de externar tudo isso numa prece é porque há pensamentos lascivos misturados ao meu prematuro amor, coisas com as quais Deus ou qualquer outra entidade suprema não compactuariam; aqui, portanto, posso começar em 15 de abril e terminar o derramamento lá pelo dia 18, dependendo da fluidez do meu escrevinhar, talvez até mesmo lá pelo São João, isso tudo se não nos embrenharmos numa aventura acalorada após a tão esperada reportagem, elucubrações que transformariam as anotações em literatura, em mera ficção desenfreada, uma resenha que me exigiria mais vocábulos e me levaria ao ponto final somente nas linhas de outubro, se tudo ocorrer com perfeição e eu não morrer na beira da praia, sucumbindo a um gozo no começar das páginas invernais de agosto. Tenho que me corrigir. Falando assim, pareço um adolescente. Isabela não sugere apenas sexo. A própria visualização do seu nome já prenuncia amor. Pois quando, numa das folhas fixadas no mural de pautas do dia seguinte, vi a sua graça ao lado da minha desgraça na planilha que me dava ciência da nossa parceria, compreendi o meu papel no mundo: pela primeira vez, serei o responsável por levá-la à contemplação de quem assiste ao principal telejornal do Estado. E tenho que fazê-lo de forma diferente. Será a minha declaração, o meu buquê. Terei ainda o dever cívico de ajudá-la a reproduzir, em alta definição, todas as suas pequenas maneiras, além da já tornada cotidiana apresentação dos seus olhinhos puxados, da sua dentição irregular e da sua respiração sofrida. Insisto em dizer que ela não me leva apenas a ser libidinoso, mas devo usar essas linhas para respeitosamente protestar contra a impossibilidade de fazê-la caminhar de lado ou de costas para a câmera, o que manterá privado o grande público de lhe conhecer o belo par de ancas, paraíso que privilegia e faz sofrer diariamente os meus confrades da Redação. Poderia o mundo esperar egoísmo em meu amor platônico, mas o metro e sessenta e poucos de Isabela precisa ser explorado e eu me vangloriaria somente se fosse a lente, a câmera ou o tripé que testemunharia comovidamente a sua dela defloração. Pode ser pecado ou falta de qualquer outra natureza de minha parte, isso eu reconheço, mas, se tudo nesta vida pode acontecer e se estaremos à mercê dos acontecimentos na Assembleia Legislativa, à cata de explicações sobre uma estapafúrdia lei estadual votada na calada da noite, não entenderei como censurável, como antiético, como amoral ou como ato contrário à deontologia jornalística a atitude da nossa bela repórter, influenciada por qualquer variação sua ou mundana de comportamento, de tirar a roupa durante a matéria. E muito menos faria protestos contra deputados ou circunstantes que se ensejassem. “Aproveitem-na, pois”, eu diria. “Façam o que não tenho coragem de arriscar fazer”. Não permitiria somente aos humanos, aliás: poderiam se assomar à multidão toda e qualquer espécie animal, interplanetária ou espiritual que quisesse nela adentrar ou provocar sensações agonizantes, pois a expressão de prazer é a única que não reconheço em Isabela e nessas horas o sujeito há que ser menos corporativista e pensar em apaziguar os seus próprios pensamentos, pois é com isso que me ocupo faz já um mês, desde quando a doce Isabela, esse vulcão, nos foi apresentada num vestidinho vermelho como nova colega de trabalho. Foi amor à primeira vista.

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