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Carta ao meu avô


A discreta, efêmera e bem terminada disputa entre familiares e amigos para assumir uma fatia das hastes através das quais conduziríamos o seu caixão, meu grande avô e pai, me encheu outra vez as medidas a respeito da sua importância, neste janeiro agora preenchido de vazio e também demarcador de uma nova era na minha vida. Um afilhado do senhor me encarou firmemente nos olhos e me tomou o lugar. Um primo me reconheceu a disposição para te fazer as honras e me prometeu que te levaria somente até ali, se eu quisesse ele me daria a vez e eu então te carregaria no trajeto final do cortejo. Dei nele um abraço e tentei investidas mais ao fundo, onde os mais velhos te seguravam com afinco, mas desisti quando vi que não tencionavam te largar. Envolvi-me ainda em tácitas negociações com o meu pai e com um tio, mas acabei escanteado. Antes, ainda no velório e também mais afastado, as frequências maiores dos soluços dos enlutados me trouxeram de volta à realidade diversas vezes, cessando em mim as reminiscências das suas maneiras e dos seus gestos mais pequenos, fosse aquele seu irresistível riso irônico, o seu embaraçado riso modesto ou mesmo o seu inconfundível ar de preocupação. Enquanto pude manter a concentração, o senhor voltou a me receber em seu lar com alegria por mais alguns segundos, jogado em seu sofá, diante mais algumas vezes da televisão, pronto outras vezes para inflar de alegria o espírito sempre que ciente da minha aproximação, munido da mesma predisposição para achar graça em tudo o que eu fazia, a mesma cumplicidade, a mesma amizade, o mesmo jeito sossegado, e o mesmo "ó praí, rapaaz" com que, de prontidão, o senhor elevava em muito a importância das minhas ínfimas conquistas. Nestas breves passagens, porém, pude observá-lo sem pressa. Pude me sentar como jamais me sentara ao seu lado, ouvir-te melhor os conselhos, medir-te precisamente o seu amor pelo Vitória, o seu encantamento pelos pássaros, a sua sabedoria sobre as mulheres, as suas convicções religiosas, políticas e humanas, e o seu método ofensivo de jogar buraco. Não poderei jamais me desfazer do rigor com que nos advertia um peido. E nem da lembrança do dia em que, já alta madrugada, acomodado num pequeno espaço de uma sala cheia, misturado com filhos e netos, revelou-se um peidador de respeito e gargalhou ininterruptamente como um serelepe menino, enquanto nós assumíamos a vergonha que outrora fora sua e contínhamos a risadaria com as mãos espalmadas sobre as bocas. Foi também por causa dessa sua simplicidade que, apesar do ar solene e do pesar no olhar dos nossos semelhantes, me permitia a desfrutar de novas diversões ao seu lado e, sem jeito, te espiava languidamente o rosto imóvel e emoldurado de rosas, certo de que o senhor irromperia outra vez aquela sua gargalhada do tipo silenciosa e gradual e nos imporia alegria em lugar da nossa reinante tristeza. Obrigado por tudo, meu avô. Começo a parar de escrever no momento em que um primo se aproxima, senta ao meu lado, faz-me crer que lê o que escrevo e me leva a iniciar mais um choro. Mas tenha a certeza de que já dobrei o meu amor pelos tios que o senhor me deixou e que vou cuidar, na medida do possível, de cada um deles, e ainda mais denodadamente dos seus netos e bisnetos. Obrigado por tudo. 

Eu te amo, meu avô.

Rafael Vilas Boas

Comentários

Anônimo disse…
"Calar é o maior pesadelo da minha inquietude. É meu silêncio, então, a minha maior prova de amor por você. Choro quieta, aqui, a sua dor que eu não posso confortar."

CM

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