Rafael França
Num impulso, um sujeito driblou um aglomerado de senhoras que tietavam o escritor e disse, com a voz embargada:
- O senhor é o maior baiano vivo. O senhor nem imagina a importância que tem para a Bahia. A Bahia te adora mais do que o senhor imagina.
Tive vontade de fazer coro para com a sua exortação, mas me calei e observei o mestre lhe sorrir ligeiro, recusar amistosamente os elogios e, como quem se revelasse intimamente tocado pelos comentários, refutar dizendo que, por incrível que pareça, é menos reconhecido em Salvador do que noutras paragens internacionais.
Num impulso, um sujeito driblou um aglomerado de senhoras que tietavam o escritor e disse, com a voz embargada:
- O senhor é o maior baiano vivo. O senhor nem imagina a importância que tem para a Bahia. A Bahia te adora mais do que o senhor imagina.
Tive vontade de fazer coro para com a sua exortação, mas me calei e observei o mestre lhe sorrir ligeiro, recusar amistosamente os elogios e, como quem se revelasse intimamente tocado pelos comentários, refutar dizendo que, por incrível que pareça, é menos reconhecido em Salvador do que noutras paragens internacionais.
Em mais uma tentativa de fazer algum bem ao ego do itaparicano, o cidadão ainda balbuciou alguma coisa, mas cambaleou e, rechaçado pela sua própria emoção, se viu estranhamente a caminhar para trás, devotando ainda a João Ubaldo somente alguns gestos indecifráveis com as duas mãos se movendo pelo ar, quase os mesmos que, minutos mais tarde, eu também não saberia como evitar.
Passei um longo período plantado num canto, só espiando aquele velho ali sentado, pouco depois de encerrado o espetáculo, a atender aos seus fãs numa elegância sem igual, tomando em suas mãos e devolvendo para mãos anônimas, com autógrafos personalizados, cada exemplar de Viva o Povo Brasileiro mais tinindo do que o outro, cada Setembro não tem sentido que dava vontade de roubar daquelas senhoras, uns Sargento Getúlio que só vocês vendo, uns O Feitiço da Ilha do Pavão todos bem acabadíssimos, eu apenas como mais um naquele auditório aclimatado por uma atmosfera permanente de admiração, dividindo com os demais presentes a esperança de desfrutar de qualquer nova palavra ou de qualquer nova manifestação com as quais o mestre pudesse nos presentear.
Meu irmão, companheiro irrequieto na aventura, não atinava direito como se comportar e, à medida que a multidão se dissipava, me puxava um pouco mais para perto do ídolo. Tive vontade de lhe dizer que não era preciso mais nada: ciente que ele é de que sou um fã inveterado, testemunhar Ubaldo falar sobre a sua carreira já me teria sido suficiente, preservássemos a paciência do rapaz, viera ele de tão longe, sabíamos, afinal, o quanto eventos como aquele poderiam lhe ser entediantes, voltássemos agora para casa, fôssemos em janeiro a Itaparica ou esperássemos por outra ocasião. Gabriel, no entanto, não comeria nada disso.
Sobretudo porque, àquela altura, mesmo ele, leitor apenas de O Sorriso do Lagarto, e, portanto, ainda um desconhecedor da valentia de Getúlio, dos mistérios de Benedita, da fragilidade de Alandelão e do heroísmo de Maria da Fé, encontrava-se já igualmente seduzido pela sabedoria do ancião com voz de barítono que nos havia falado por pouco mais de uma hora, numa conversa com o também escritor Rodrigo Lacerda que fizera toda a plateia vibrar, dada a sua já conhecida simplicidade mesclada a uma erudição polifônica.
Antes, acompanhado passo a passo pelo nosso fascínio, João subira ao palco e, somente por se fazer presente, fora logo aclamado. Depois que empunhou o microfone, suas primeiras palavras foram "boa tarde". Depois parou, olhou o relógio, lembrou-se de que já passávamos das seis e emendou: "ou boa noite". Brincadeira simples, se proferida por um cidadão comum, mas somente por ele capaz de causar espalhafatosa risadaria e uma nova chuva de aplausos.
Imagino que, se João Ubaldo Ribeiro passasse toda a palestra tossindo, gargalhando ou até mesmo em silêncio, também nos encheria de alegria e certamente sairia aplaudido. Por si só, a sua aura já o representa e já nos remete imediatamente a tudo o que produziu: por mais vozes que dê às suas personagens, não consegue se esconder. Há um pouco dele em cada uma delas. Doa complacência e zelo a todas, sejam lá quais forem as suas índoles: da denodada Maria da Fé ao degenerado Perilo Ambrósio. É aí que, eu penso, reside a magia da sua prosa.
Sobra em João sagacidade até mesmo na respiração. Somente com os olhares que lançava ao seu interlocutor, no decorrer de uma pergunta ou outra, já nos preparava os espíritos para respostas engraçadas, todas elas arremessadas ao público com a tentativa de fazer parecerem simples os processos de escrita que o levaram a produzir toda a sua premiada obra. Lugar comum em sua jornada, estava ali diante mais uma vez de uma enxurrada de perguntas, todas presumidamente capazes de fazê-lo nos entergar os tesouros.
Mas, hoje entendo, não há em seu universo muito o que esconder: tal como ele se define, João é mesmo um sujeito que senta e escreve e que faz da escrevinhação o seu ofício. A engenhosidade do seu texto e a originalidade da sua obra o distinguem dos demais autores. Contudo, uma vez tido um primeiro contato com o escritor, a imagem do artista antes sacralizado desaparece, e só o que vemos é um camarada falante e sorridente, talvez trazido ao estrelato somente por não nos ser possível sonegar-lhe o reconhecimento.
Pois eu sei que, terminado o papo de Ubaldo com Lacerda, levantamos todos numa tacada só e, com olhares pedintes, esperamos que o escritor se mantivesse ali por mais um momento. João entendeu e nos recebeu com uma simpatia ímpar. E não foi preciso que o meu irmão me empurrasse outra vez: eu tomei coragem, cumprimentei o ídolo com um aperto entre mãos, o parabenizei e, com a sensação de dever cumprido me sobrando no peito, me despedi tartamudo e tateando o ar.
Salvador, 19 de novembro de 2013, dois dias depois da participação de João Ubaldo Ribeiro na Bienal do Livro da Bahia.
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