- Cuidado com as prevaricações, menino.
- Não, mainha, é só um registro. A senhora mesmo viu como eu fiquei babando desde segunda-feira. Aliás, desde segunda-feira, não, minto: tô assim desde quando a senhora se espreguiçou no sofá e disse, há pouco mais de duas semanas, que precisava de um descanso longo, por isso torcia que nos viesse logo a semana santa, e foi aí que eu senti como que um negócio de um estalo na barriga, um alagamento na língua, uma inquietação, uma febre, uma agonia, parecia que nada mais me fosse capaz de agradar o paladar, porque eu fiquei mesmo foi com tesão na oleosidadade de carurus, de vatapás, de feijões fradinhos, de pimentas ardentes, de corvinas, de bacalhaus, de farofas, de pirões, de frigideiras, de vermelhos, de sardinhas, de robalos, de cações, de garoupas harmonizadas, de badejos, de dourados, de camarões e de tudo mais o que não for água ou pedra naquela extensão toda do mar, a senhora viu bem como fiquei, e sabe também que não me são sintomas somente desse ano, fico assim em toda proximidade da data, fico assim ligeiro só de imaginar aquela amarelidão borbulhando em sua panela de barro, a senhora cada ano mais barriguda, cada ano mais sorridente, com aquele mesmo lenço velho onde se nota a falta de cores e de pedaços, a senhora me parece sempre contente por manter a tradição, convida sempre umas tias, delega funções, discute com elas têmperos, pergunta a elas se têm notícias de fulanas, responde a respeito das fulanas que são das curiosidades delas, e ainda acha tempo para discutir a respeito do casamento mais recente, enquanto que, com muita destreza e com uma certa alegria, ainda me libera alguns amendoins torrados que seriam do caruru, me dá também alguns nacos de coco, me dá explicações, me dá safanões, me ameaça com a faca minutos antes de pôr tudo à mesa, me diz que vá lá fora, que vá procurar distrações, que leve essa renca de meninos comigo, que lhe deixe trabalhar, que considere o seu suor e o calor infernal de nossa terra, que eu saia dali e vá me ocupar em outro espaço, que eu pare de pensar nessas comezainas, porque a senhora não tem culpa, quem tem culpa mesmo é o fogo, e ainda que devo respeitar o tempo de cozimento e tudo mais, que eu espere, pois, e que não superestime o cheiro, porque nesse ano faltou isso e faltou aquilo e que eu não vá botando muito minhas asinhas de fora, não, porque nesse ano não será como o ano pregresso, em que houve farturas, dessa vez será só um pratinho e olhe lá, se alguém largar possa ser que me dê mais um tanto, mas que eu não deva mesmo me animar bastante, porque eu não sou o único a apreciar os sabores, e ainda diz isso sorrindo, como se somente a senhora conhecesse da arte, isso tudo eu vejo, pensa que não vejo?, sei o quanto isso te infla o ego, sei o quanto a senhora se sente dona de tudo aquilo que maneja com perícia na panela ou fora dela, mas aí a senhora pouco deixa que eu me achegue em cafunés e já vai logo assumindo seriedade e me lembrando que temos que lembrar de deixar o de Jonivaldo, que é infeliz por trabalhar no feriado mas também tem esperanças e deposita toda a sua crença na imagem da sua dele marmita repousando na geladeira, que ainda tem os primos que todo ano vêm almoçar com a gente, que ainda tem os agregados, que ainda tem aqueles que não resistem à fragrância e batem na porta pra desejar um feliz dia da semana santa e comentar como os meninos cresceram para depois se sentarem no sofá, que ainda tem o tantinho daqueles que nos chamarem ao telefone dando e pedindo notícias, e depois a senhora pega e desanda a falar da simbologia da data, e que esse é que é o espírito, e que eu afaste essa gula de mim, faz ponderações?, faz, faz, como a de que toda aquela borbulhação não é como o caruru de sete meninos, mas que não pode mesmo atender ao meu pedido para que nos isolemos de todo o mundo, porque essa é uma data inspiradora e que, por conseguinte, há que se ter amor ao próximo se o próximo se sente igualmente extasiado por aqueles cheiros amarelos todos, foi essa educação que a senhora me deu?, digo logo que não, baixo a minha cabeça e fico em algum canto te espiando dar os retoques finais, começo a pensar que vai ser esperdício, depois afasto o mau pensamento e dou lugar à reflexão de que, se não é esperdício, então é desamor de mãe, mas não é, eu sei que não é, e aí fico, pois, nesse canto, buscando argumentos pra conseguir um segundo prato, enquanto as tias todas se agitam e lembram de como fora a comilança no ano passado, cheias de boas memórias também, rum, demonstram saber até mesmo o tamanho das postas que foram empossadas por cada um, demonstram se recordar até quem fora servido primeiro, e aí de tanto entusiasmo eu começo a desconfiar delas, desconfio de que comam mais de uma vez, nunca se sabe, desconfio de que economizem na distribuição dos pratos alheios, de que encham mais os pratos dos seus delas filhos, fico com essa inquietação e tenho vontade de te puxar rapidinho pra fazer esse comentário, mas não posso, porque tenho responsabilidade e sei que, se tiro a sua concentração, tudo pode desandar. Que seja assim, então, mãe. Que a senhora pelo menos se lembre de mim e coloque o que me é de direito com prioridade, pois eu fiz um longo hino pra enaltecer a semana santa e possa ser que daqui a algum tempo, quando Deus me livre e guarde essa tradição cair em desuso, alguma gordinha feito a senhora encontre esse texto gigante passeando pelo Google e não deixe de santificar a semana. Então eu já fiz minha boa ação. Já tá pronto...?
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