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Carta ao meu filho



             Era luto. Não luto, luuuto assim propriamente dito, pensando bem, pois talvez até fosse uma demorada contrição, mas acho que era mesmo era uma espécie de um silêncio puramente respeitador, filho, uma pausa, vá lá, uma necessidade maior de não dizer, de não exceder ou até mesmo de não existir, espero que me entenda.
                Se ainda não, então te juro que um dia compreenderá as razões mais fundas para que eu não o tivesse endereçado uma carta antes. Um dia direi a você, sem tergiversar, como perdi de vista o rebrilho daqueles olhos acastanhados, mas adianto que foi um horror, um horror, algo de uma total incompetência. E, a essa altura, você já deve mesmo saber, então não farei esforço, pois seria em vão tentar esconder: aquela que acreditávamos devesse ser a sua mãe já não está comigo e, portanto, ainda não está na sua hora de voltar.
                Siga alma, por enquanto, permaneça como não matéria, continue uma não substância, eu te peço, e, se não for mesmo possível se estender nesse aguardo em que está, o faça somente por pelo menos mais um tempo, só por mais uma fatia de tempo, eu prometo. Direi assim que souber. Serão os melhores nove meses da sua inexistência, apesar de acreditar, em algum lugar, que aí no poleiro há maior celeridade, não será como aqui, que nos impõem cerca de 270 dias de espera, o tempo de espera aí não haverá de ser longo, e isso um dia todo mundo já comprovou e ainda haverá de comprovar mais um sem-número de vezes, mesmo que uma entidade insista em sempre nos obrigar a esquecer quando fazemos a passagem.
                Mas tem coisas de que não me esqueço, meu pequeno. Tem coisas que crio, é bem verdade, tem coisas que são coisas de minha criação, que vêm da minha literatura, ambos sabemos que não me são lembranças, mas tem coisas, você também sabe, que não permito que me façam esquecer e, isso você também já sabe, porque já te contei, essas mesmas coisas me revisitam sempre madrugadas adentro, por meio de sonhos ou disso a que chamam por aí de desdobramentos, mas o que eu não posso mesmo, por exemplo, é deixar de lembrar da vez em que, eu um escravo sagaz do século XVI, te vi reencarnar como meu filho, um mulato lindo, do ventre de uma dona, uma patroa nossa, uma branca benevolente que me abrira as pernas num dia estranho de soalheira, eu um negro viril que só você vendo, pois era desse tipo que ela gostava, isso ela chegou a confessar e, ainda por cima, veja você, acrescentando também, gemendo em algum pequenino instante daquele nosso momento, que, em si, já era efêmero, que já não se aprazia com a rola azul do seu dela marido.
                Pois é isso que quero te dizer, e isso é o que quero reforçar: o laço que nos une. É isso, é isso, filho. Apegue-se a ele e tenha um pouco de fé, rapaz, que uma hora você desembarcará por aqui, ambos sabemos disso, virá pra cá num voo rasante, haverão de lhe proporcionar logo essa adrenalina, grudar-se-á ao feto, pequeno, chegará ligeiro, e viverá as aventuras mais memoráveis de toda a sua história, quero ver te fazerem esquecer, quero ver, você jamais esquecerá de nada, porque ninguém espera tanto tempo assim pra chegar a esse mundo e fazer feio por aqui, ninguém espera tanto tempo assim pra nascer feito o pai, que não se mexe por nada, que só dorme, que só come, que só não faz nada, nada, nada, ninguém será como este incapaz deste pai, é um pai incompreendido?, é, sim, mas é um pai fracassado também, incompetente, burro, estapafúrdio, um inerte, tudo isto está se vendo, tudo isto se sabe, se sabe também que ele é um inútil e que, se ele pudesse fazê-lo nascer por meio de punhetas, você já estaria a essa altura na primeira unidade da oitava série. Por isso até acho graça de como sinto esse seu revérbero, é lindo isso, parece coisa mesmo de energias, de vibrações transcendentes, eu fechando daqui os olhos e te vendo todo assanhado aí, querendo saber das coisas de cá. Muito bom, muito bom. Vejo algo de muito positivo nisso. Demonstra interesse pelos outros; não se revela indiferente. Mas, que é que se faz ver no meu mundo que no seu já não se perceba em vastidão?
                A primeira diferença, imagino, é que vivemos aqui em sociedade, ainda que tenhamos agido frequentemente como canibais, por isso é que daí você testemunha mais chegadas do que partidas, aqui há uma coisa chamada morte, isso volta e meia aprendemos, demoram um pouco a nos dizer, mas acabam contando, lá pela terceira ou pela quarta série, isso você comprovará, eu te tomarei pelas mãos, no caminho da escola para casa, e te noticiarei que alguém fez a passagem, farei você sentir o maior medo da sua nova encarnação, você vai ver, você vai ver, se pudesse mesmo eu te diria que não venha, que não queira vir, ou que peça autorização para mudarem os nossos rumos, não quero te ver sofrer, não quero te ver pequenino e ter que temer por qualquer queda sua, é medo de tudo, você vai ver, você vai ver.
                Mas não se assuste com nada disso e vá me perdoando pelo desabafo. Aqui também há coisas bonitas, isso também há. Quer ver uma? Uma coisa bem bonita, vou te contar, sabe o que é bonito, filho?, não sabe?, bonito mesmo, broto, vou dizer isso pra encurtar a história e pra não falar o verdadeiro motivo de toda a minha ira, bonito é ver o Vitória jogar. Tenha fé, meu bom rapaz, tenha fé que te trarei um pouco antes de ele ser campeão.

Comentários

Gabriel França disse…
Um ótimo texto. Interessante essa comunicação com um ser ainda inexistente, cercando a sua indefinida chegada de expectativas e idealizações. Quando eu for escrever a minha carta, seguirei a mesma linda, com única ressalva de tirar a péssima última linha do texto, que fala do vicetória. rs

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