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Deus e a tragédia



No último domingo de janeiro de 2013, na madrugada do dia 27, o Brasil sofreu uma das suas maiores tragédias dos últimos anos. Um grande incêndio na boate “Kiss”, na cidade de Santa Maria (RS), vitimou 231 pessoas e deixou mais centenas feridas. Era uma festa universitária, com alunos dos cursos de Agronomia, Direito, Jornalismo, Medicina Veterinária, Ciência da Computação, Filosofia, Letras e Tecnologia em Alimentos, além de outros que já faziam seus respectivos mestrados na Universidade Federal de Santa Maria. O Brasil amanheceu neste domingo com a cabeça baixa, bombardeado por noticiários de todos os lados, que mostravam as cenas desesperadoras do acidente e das pessoas, que, pelo lado de fora, tentavam quebrar as paredes para salvar as vítimas.
A comoção foi geral. Todas as regiões do país puderem ver e se solidarizar com o desespero e a angústia dessas famílias, que perderam os seus entes queridos num caos sem precedentes. Alheio a toda essa tristeza, foi possível ver pessoas desconhecidas, que não tinham sequer um familiar como vítima da tragédia, mas ajudaram a todo instante, somando-se em número aos bombeiros, carregando os corpos, dando apoio às famílias, sendo humanos.
Após o conhecimento das pessoas sobre todos os detalhes do drama, sempre começa, um dia após o fato, a temporada de comentários, discussões e justificativas: confesso que temo este momento. E, exatamente como previ, li um simples comentário no Facebook – local onde as discussões tem sido mais evidentes -, que lamentava o acontecimento, mas o justificava: “Deus sabe o que faz”. Pronto. Aquilo foi suficiente para me tirar do sério e para me fazer refletir. Senti uma vontade muito grande de responder àquela pessoa que escrevera mensagem tão curta e espinhosa. Teria dito se ocasionalmente a visse: “Deus sabe o que faz porque não é você que está com um filho morto neste momento! Deus sabe o que faz porque não foi você que tentou escapar de um incêndio e viu as portas trancadas, não viu saída e morreu asfixiado! Deus sabe o que faz porque não é você que está indo ao enterro de seu próprio filho! Deus sabe o que faz porque você viu tudo isso pela televisão e postou esta besteira em seu Facebook, seu hipócrita!”.  Sim, são comentários furiosos. Mas, apesar disso, creio que a postagem citada acima tenha sido – apesar de silenciosa e aparentemente reconfortante – muito mais ofensiva. Diga àquela mãe que perdeu o seu filho na tragédia, sendo queimado e asfixiado, que deus sabe o que faz, e então ela dirá coisas muito piores que o meu possível comentário acima.
O meu maior questionamento é o seguinte: por que as pessoas se acham no direito de, além de acharem que sentem a dor alheia, justificar os acontecimentos das outras pessoas através da sua própria crença? Frases como “Deus sabe o que faz”, ou “É da vontade de Deus”, ou “Deus tinha um plano na vida dele”, ou “Só Deus pode reconfortar esses corações”, são puramente falsas e ilusórias, pois só servem para tratar de algo que acontece com o outro. Quando acontece conosco o mundo desaba, caem as crenças, as divindades, o sobrenatural e toma lugar a dor, a angústia, a tristeza, a dúvida e, enfim, a reflexão. Para os que tentam consolar os familiares com dizeres parecidos a estes, eu questiono: quem disse que a família aceita ser esse o “plano de Deus”? Quem disse que a mãe, agora sem filhos, após anos de cuidado, carinho e amor, aceita a simples frase “era a hora de Deus”?  Você aceitaria?
Falar de religião é complicado, e torna-se ainda mais quando a criticamos, ao passo que vivemos cercados de crenças por todos os lados e de pessoas – inclusive as nossas próprias famílias - que acreditam firmemente em seus escritos e suas ideologias, e acabam repetindo absurdos como os que citei anteriormente. Certamente, não são todos que pensam desta maneira ou que se aproveitam das maiores tragédias para legitimar a sua religião e o seu próprio deus, quando, por exemplo, num acidente de avião com 500 pessoas, morrem 499 e uma fica viva, naturalmente surge alguém dizendo que a sua divindade salvou o único sobrevivente, tentando propor um status de milagre sobrenatural, esquecendo-se, apenas, do mais simples e mais óbvio: e os 499 mortos, não mereciam ou gostariam de estar vivos?
A tragédia na boate de Santa Maria poderia também ter acontecido em qualquer lugar, com quaisquer pessoas, devido às condições de segurança que são precárias em nosso país e que, infelizmente, possibilita a tragédia em qualquer cidade. Os habitantes de Santa Maria nunca mais serão os mesmos. As famílias nunca mais serão as mesmas. Infelizmente, como a ideia de um deus interventor ainda está enraizada em nossa sociedade, teremos de aturar mais comentários “reconfortantes” – ou não – daqueles tipos mencionados acima. Respeitemos a dor destes familiares e a vida das vítimas que se foram. Respeitemos o silêncio destes e o choro daqueles. Respeitemos cada vez mais a nossa humanidade e esqueçamos as nossas justificativas baratas para a dor dos outros. Cresçamos em harmonia e caiamos em egoísmo. Definitivamente, deus e a tragédia não combinam.


GF

Comentários

Danilo França disse…
Excelente texto. Não é um texto visto todos os dias; muitos acanham-se e não expõem o seu ponto de vista, isso se intensifica quando este ponto de vista é minoria em uma sociedade cheia de paradgmas e convicções.
Parabéns pela coragem e a bela escrita.
Abraços.
Joás Designer disse…
Deus sempre "põe o dedo". É óbvio que não foi Ele que dificultou a saída das pessoas daquela boate para se cumprir a "Sua vontade", mas tenho certeza que algum dia, Ele deu oportunidade aos proprietários de cumprirem com as cláusulas contratuais para com a estrutura do local. Disso não tenho dúvida. Lembra de "Efeito Borboleta", que por sinal, é nosso filme favorito? Pois bem, uma escolha pode mudar a vida de muitas pessoas, amigo. Eles optaram pelo lado mais rentável: construir só uma saída. Era mais barato. Deus? Ele está lá no céu. Glorioso! Ele sempre faz a parte d'Ele!
Anônimo disse…
Diante de um texto tão polêmico e com uma visão unilateral, contrastando com a proposta do mesmo, eu não poderia ficar em silêncio, muito menos para polemizar e muito mais para não ser covarde no silêncio reflexivo e no menear da cabeça em desacordo.

Não se trata de crer ou não em um Deus que controla e dirige tudo, mas em opinar em nome de alguém. E foi exatamente o que fez o texto. Na verdade, o contrário pode ser questionado: Quantos parentes ficaram reconfortados com a frase criticada? Fica claro que o autor, meu querido sobrinho Gabi, foi quem ficou realmente chateado com o que leu, pois não vê, crê e entende como a maioria dos brasileiros, crentes numa fé sobrenatural.
Ora, se é para respeitar, respeitemos o direito de crer e de desejar que a crença, fundamento da vida de muitos, inclusive da minha, seja norteadora dos votos de melhoras ou de consolo.
Quem não consegue ver que sua crença (ou falta dela)interfere em todos os campos da vida, não deveria também respeitar quem, de modo oposto, não agasta uma única ação do ser Supremo ou de sua forma de relacionar-se com o Mesmo.
Não quero entrar no âmago da questão, pois sou daqueles que crê piamente, que a discussão sobre a divindade não a trará para mais perto ou mais longe, sobretudo por acreditar num Deus pessoal, que olha do alto e vê não uma multidão, mas um indivíduo, dotando-o de capacidade de escolha, livre-arbítrio, inclusive para que este viva como se o seu Criado não existisse. É uma relação paternal, como uma pai que quer o melhor para o filho mas não age em seu lugar, embora o esteja espreitando sempre aguardando o chamado: Meu pai preciso de ajuda! Pronto, cheguei!
Onde Deus estava enquanto o fato ocorria, fruto do livre-arbítrio de todos os envolvidos (banda, dançantes, sócios, equipe de ajuda)? Atendendo cada pedido pessoal, fortalecendo cada corpo para continuar ajudando e recebendo o pedido de perdão e abrindo os braços para receber todos aqueles que se recordaram de clamar, mesmo no último momento da vida, no seio do seu amor.
Eu sou prova do amor de Deus! Só escrevi por causa desse amor, e muito recentemente, quando o desespero chegou à minha porta, diferentemente do externado no texto, confiei ao ponto de louvar, quando a vontade era desesperar, ao ponto de sorrir, quando a vontade era de chorar... até que chorei de alegria, quando Ele me socorreu.
Desculpe-me meu sobrinho, mas calar-me seria covardia.
Grande abraço. Deus te abençoe!
Jocimar França dos Santos
Anônimo disse…
Andava tão atarefado, que nem havia visto o texto no blog. Fiquei feliz por ver Baby escrever mais uma vez. Um episódio tão trágico e tão badalado pedia um texto realmente. Embora o texto tenha sido bem simples, direto, há muita filosofia e teologia por detrás dele. Acho válido questionar, sempre. Essa é a essência que nos torna seres racionais. E é dos questionamentos e incertezas que construímos nossas ideologias. Não compartilho com a maioria dos cristãos no que diz respeito à Teodicéia. Recentemente, postei no facebook um vídeo de um pastor evangélico chamado Kivitz, que fala sobre a Teodicéia e em momento algum justifica a tragédia do modo citado no texto. Como cristão, acredito na Bíblia e creio na teodiceia preconizada por Salomão, onde o sol e a tragédia recai sobre justos e injustos. O dilema Deus de amor x Deus de poder é uma grande celeuma teológica. Particularmente, gosto dos escritos de Harold Kushner, Philiph Yancey e Ricardo Gondim. Eles estudaram e imergiram no assunto da dor, da tragédia e da relação de Deus com tudo isso. A reflexão foi válida, Baby, mas mesmo que as frases dos cristãos nessa circunstâncias sejam aparentemente 'tolas' e te deixem furiso, elas decorrem de uma crença, um dogma, bem como outras religiões deixam muita gente furiosa. Não posso jamais limitar o direito do meu semelhante de achar que tudo foi obra de Deus ou quem sabe do diabo, embora eu não concorde uma vírgula. Entretanto, expor seu ponto de vista, sua opinião, é importante e salutar. Aconselho a leitura de Eclesiastes, como já aconselhei Danilo e depois juntos, como primos e amigos, podemos refletir um pouco mais sobre esse mundo em que vivemos e no que cremos. Gostei muito do texto!!! Abração

Tiago França

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