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A dona do jornal

    Se dera os gritinhos do seu agrado e fizera à maneira como ela sempre lhe pede em ocasiões como a que se encontravam, por que, então, tinha Carlota de lhe fazer aquela inesperada pergunta? Já não estava tudo bem? Não lhe passava pelos miolos que ele poderia ficar assim, desse jeito, confuso, quase incapaz de executar gestos e notadamente incapaz até mesmo de balbuciar alguma coisa, como quem quase se encontra totalmente desprovido da propriedade da fala? O que quisera Carlota com aquele inquirimento? Por que não lhe perguntara antes do ato amoroso, para que, sem hesitações, sem cerimoniosidade, com o cenho fechado, com a arcada dentária justaposta, com o olhar fixado no nada, com toda a inexpressão no rosto, enfim, ele lhe passasse a vara com sentimentos outros que não somente através de com todo aquele amor com que fora indolentemente levado a se doar? E será mesmo que ela não podia antes avisar que se preparasse e que assumisse outra postura no leito para que não caísse teso ali mesmo? Tinha que ser mesmo exatamente naquele instante, justamente no momento que sucedia o seu primeiro - e último – descarregamento da noite, momento em que sempre, bem como em pouquíssimos outros momentos em sua vida, punha na cara aquele seu sorriso lerdo, o mesmo de quando, ainda um inocente menino, descobrira pela primeira vez no seu corpo serventia inexplicavelmente revigorante? E aquilo lá era pergunta que uma mulher casada, e distintamente muito bem casada, fizesse ao seu marido? Que interesses tinha com aquela indagação, podia saber antes de começar a responder? Já não tinha provas suficientes do seu amor, já não mais se dava por satisfeita ao lembrar que, embora fosse um homem de negócios como era, ainda assim tivera por toda a vida a grandeza de cancelar grandessíssimas conferências e compromissos diversos somente e tão somente para atender às mais requintadas das suas solicitações? Pois não ocorria a ela em momento algum, enquanto aguardava sair de sua dele boca algo mais do que apenas aquela baforada quente, que a indagação que lhe fizera era um açoite a todos aqueles anos de enlevado matrimônio? Não queria voltar atrás, entrelaçar os corpos e, repousada em seu ombro, declarar que aquilo fora incrível e que há muito tempo, desde os tempos de fêmea mais jovem, não o sentia com todo aquele ardor, aquele garbo e aquela virilidade com que, outrossim, sempre soubera ser o seu marido por toda a vida capaz de com estes atributos lhe fazer extasiar? E que tipo de curiosidade era aquela? Em que mundo vivia, afinal?
    Conviveu Anacleto com estas e com outras perguntas que se lhe surgiram mais do que instintivamente em sua cabeça rodante, enquanto a fisionomia há muito já deixava de lhe ser a mesma, esperando já que lhe acometesse o pior, talvez um derrame ou uma convulsão, muito bem prenunciadas que já eram por aqueles sintomas que já sentia, a começar por aqueles lábios tremelicando, aquela cabeça pesando sobre um pescoço que aparentava incapacidade em suportá-la, aquele frio batendo sobre o peito descoberto e que concomitantemente não lhe privava os baixios do corpo, mesmo que estivessem eles devidamente bem abrigados sob o lençol, e sem falar naquela visão turvando, indo, vindo e dando às paredes do quarto cores que não possuíam, e ainda por cima distorcendo o vulto da mulher à sua frente. Ainda era aquele o vulto de Carlota, aliás? Era Carlota sua mulher? O que foi mesmo que lhe perguntara Carlota? Ah, sim, lembrou. E aquilo lá era pergunta que fizesse a homem feito ele? Onde enfiara esse coco, mulher? Com quem andava conversando, agora queria saber, com quem andava conversando? Quem fora o(a) responsável por lhe incitar pensamentos que a levassem a questioná-lo dessa maneira? Teria antes explicações a dar? Revelações a fazer? Que influências tivera? Han? Queria saber. Não. Queria saber: isto, sim, era muito mais importante. Queria saber isto acima de tudo. Han?
    Todavia, desde o momento em que os seus tímpanos encontraram-se com a sonoridade da inesperada pergunta, se mantinha taciturno sobre a cama, de modo que nenhuma das perguntas com as quais pretendeu reagir à pergunta da sua Carlota conseguiu proferir. E tristonho daquele jeito se manteria. Até que tomasse coragem, deixasse de ser falso ao corpo, agisse feito um verdadeiro homem e se decidisse por não mais relutar, por não mais debalde tentar rechaçar aquelas reminiscências, inciadas pela visão daquele quadril que lhe começava a palpitar na memória, daquelas coxas que tornavam mais elegantes aquele andar, daquela boca perfeitamente delineada por um batom grená, daqueles modos, daqueles trejeitos, daquelas pequenas maneiras, rapaz, daquela suavidade, daquela fala arrastada, daquele jeito com que os lábios e a língua se cadenciavam sincronizadamente quando ela pronunciava S's, R's e L's. E ainda tinha a lembrança daquele perfume que reconheceria de longe, estivesse ele onde estivesse, por menos apurado que soubesse lhe ser o sentido do olfato, era ou não era? E que dizer daquelas madeixas? Esqueceria por completo aquelas madeixas? Por que não deixava as coisas a cargo das lembranças, homem? Que teimosia era essa? Fingiria que não escutava aquela voz lhe falando lá do fundo do cocuruto, bem como gostava de escutar nas surpreendentes tardes sentado bem ali, do ladinho dela na Redação? Vamos lá. Por que não retoma a postura e diz qualquer coisa a Carlota em resposta, homem, para em seguida desfrutar destas recordações? Começa escutando o que lhe diz a moça: vai que é mais uma daquelas dúvidas que ela lhe expunha, quando debruçada devotamente sobre o papel, sempre que, ao seu lado, ia escrever a sua matéria do dia. Vai que ela repete daquele mesmo jeito aquele pensamento dela que lhe fizera estrebuchar, lembra?, tamanha a quantidade de vezes que ela fora obrigada a pronunciar quase que como a cantarolar com assovios todos aqueles S's por que a frase era inteirinha uma frase no plural. Deixa de besteira, homem, toma jeito. Recompõe-se e encara Carlota com naturalidade, dá-lhe qualquer arremedo de explicação e retorna para onde queres retornar, ora pois. A quem quisera enganar, aliás, Anacleto, a quem quisera enganar durante aqueles tempos todos ensinando à menina recém-chegada, ainda uma estagiária, coitada, tudo o que ela não aprendera no colegial, como, por exemplo, a usar virgulas, pontos de seguimentos, pontos finais, pontos e vírgulas, hifens, tremas, crases, circunflexos, agudos, tis, apostos, vocativos, verbos, substantivos, adjetivos, advérbios, subjuntivos, pronomes, artigos, preposições, metáforas, hipérboles, hipálages, metalepses, metonímias, paradoxos, disfemismos, eufemismos, antíteses, gradações, antífrases, alegorias, ambiguidades, enumerações, mesóclises, próclises, ênclises e tudo quanto o mais ela alegasse, com aquele seu inolvidável biquinho, ter direito a possuir pleno conhecimento? Esquece-te de que havia testemunhas ao redor, homem? Prefere enganar-se propositadamente quanto ao desconhecimento alheio do seu interesse, da sua paixão vexada, da sua entrega de corpo e alma àqueles encantos e de todas as vezes em que a sua matéria continha até mesmo erros ortográficos colossais, enquanto que a dela, apaixonadamente revisada por ti mesmo, homem, não somente não continha erros bem como também saía tão bem escrita, tão perfeita, tão alinhadinha, tão imparcial e tão objetiva?
    Pois que essa era a hora de assumir toda essa fraqueza a si mesmo, não era? Ou diria, então, que não era por isso que estava desse jeito? Não era por causa da lembrança de todo aquele poço de juventude e ao mesmo tempo de pujança? Deixa disso, Cleto. Era por causa de Iracema, não era? Anda lá, homem, assume. Era por causa dela, a dona do jornal, como muitas vezes já lhe flagraram pelos cantos fazendo a ela referências e reverências. Era por causa da dona do jornal, por causa de Iracema, dona do jornal e do seu coração, não era? E que é que havia demais em dizer isso a Carlota? Lembrava-se da pergunta dela, não lembrava? Sim, sim. Lembrava. Lembrava muito bem, sim, senhor, mas divagava por outros cenários e por outros tempos, com a mente rebuscando cada encontro no corredor, cada tombo desajeitado, cada derrubada de papéis, cada descuido que deixava aqueles seios quase à mostra, cada contemplação daqueles olhos acastanhados, cada contemplação dela alisando o próprio cabelo, cada distração, cada espanto, cada palavra dita e escrita fora dos padrões, cada vez que aquelas mãos macias lhe tampavam as vistas e eram sucedidas inocentemente por uma rouquidão interiorana que lhe indagava “quem é?”, cada conversa sobre a vida nos intervalos, cada abraço, cada ciúme que tivera dela conversando baixo com outros repórteres e de cada conquista.
    Lembrou-se das conquistas de Iracema e sentiu uma quentura estranha lhe corroendo tudo por dentro, Anacleto? Não era você mesmo, homem, quem mais queria vê-la feliz e muito mais do que feliz nessa vida? O que era isso, então, que estava sentindo? Era suor o que Carlota lhe enxugava no rosto? O que foi que lhe deu, homem? Que é que há demais em lembrar que, de estagiária - inegavelmente por causa do seu auxílio, é bem verdade - passara Iracema a repórter e que, de repórter - para a sua completa bestificação, homem - ela passara tão rapidamente a editora, e depois a editora coordenadora, e depois a secretária de redação, e depois a esposa do dono do jornal? E por que lhe seria tão custoso lembrar das agruras que passara quando dera por sentir a sua dela ausência, desde que ela passara a se encontrar metida numa sala reservada, cheia de compromissos importantes, de conferências ao telefone, de acertos para viagens ao exterior e tudo o mais? Que desconforto lhe causa lembrar, homem, das imagens de Ceminha sopesando papéis, perambulando pela Redação de salto alto, resolvendo pendências aqui e acolá com aquele olhar altivo, caminhando com aqueles passos decididos e o encarando, nas escassas ocasiões em que algum assunto de trabalho os obrigava a se encontrarem, com a mais perfeita expressão de quem se dirige apenas a um subordinado e nada mais?
   Que é que há demais em tudo isso, Cleto? Que é que um gerente de banco, que é que um homem de negócios feito você, que enxerga números com frieza e entende muito bem o que eles querem dizer, não pode superar nessa vida? Não pode ter nem mesmo uma recaidazinha? Andá lá. Recompõe-se, homem. Toma jeito. Volta e encara a vida. Volta e olha nos olhos da sua Carlota antes de responder à pergunta dela que ainda ecoa pelos ares. Anda lá, homem, diz logo a Carlota por que você deixou de ser jornalista.

Comentários

Unknown disse…
Este comentário foi removido pelo autor.

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