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Vida ou morte da menina à beira do córrego

Algo me dá a certeza da iminência da sua morte. E isso me inquieta. Dá-me uma angústia rareada: vejo-lhe somente por alguns segundos e temo ser surpreendido fulminantemente pelo seu fim. Tento com verbetes amenizar a sua dor, mas, a não ser na hora em que a enxergo de relance, exatamente no mesmo instante em que o ônibus me põe perpendicularmente em sua direção, não consigo mais materializá-la, e aí eu volto a fechar o arquivo de texto em que ela também habita.
           É, me falta despejo. Até tento, mas as palavras se revelam fugazes. Fogem pela lateral. Desaparecem. Permaneço, então, sem me certificar sobre se dela são longos e castanhos os cabelos e sobre se ela ainda não passa dos onze. Porque ela está sempre de costas, não enxergo a cor dos seus olhos. Não conheço e não dou conta de atribuir o timbre da sua voz. Faço esforço, mas não memorizo a gravura que lhe estampa o vestido. Contudo, conforme já disse acima, há mesmo algo mais importante sobre ela com que devo me preocupar.
          Mas antes antecipo que a conheci por incentivo de Stephen Koch, em Oficina de escritores, livro de sua autoria com o qual tenho me deleitado na minha reinante teimosia por aprender sobre os modos e sobre as minúcias do ofício da escrita, uma atividade para a qual, apesar de sem cerimônias reverenciar, tenho confessadamente larga preguiça em executar.
Pois bem. Conheci a menina antes mesmo de chegar à página 60, após ter Koch parafraseado um autor para quem os nossos personagens devem sempre querer algo de imediato, mesmo que seja esse algo um simples copo com água, pois assim o leitor haverá de ser fisgado pela história que nos aventuramos a contar, afirmação que abracei com a felicidade de quem outrora sabiamente já houvera chegado à mesma conclusão.
           Eu passava justamente pelo córrego, quando entrei em êxtase com o jaez desta orientação. Fechei o livro do professor Koch imediatamente e o agradeci pelo pensamento: pareceu-me mais do que inteligente e oportuno. Pareceu-me, sim, não posso evitar esta confissão, pareceu a mim o estalo de que eu tanto necessitava para voltar a escrever e tirar do ócio o nosso blog: o livro de Koch é motivador, e é acima de tudo muito honesto.
De prontidão e instintivamente, então, porque tem a minha imaginação deixado muito a desejar, a excelente metáfora me permitiu pensar apenas n’alguém com sede, e foi aí que a menina me surgiu ao longe, avistada por mim - e hoje já sei que somente por mim - pela janela do grande veículo público, mas distraidamente alheia à minha contemplação, sentada à grama, formando com as mãos uma pequena concha para usufruir daquela água enlameada, como quem ignorasse a civilidade da cidade grande ao seu redor.
          Desde então, busco o mesmo ângulo de visão em todas as vezes que, da janela do ônibus, revisito milimetricamente o mesmo local, e sou capaz de me despejar sobre os passageiros desavisados que, incapazes de perceber à esquerda o perigo que ronda a menina, se instalam no único assento de onde consigo avistá-la.
Cheguei até mesmo a discutir com uma moça, certa vez, porque, diante do intrometimento do meu rosto janela afora, ela alegou invasão minha de território e disse ainda que eu estava me jogando, dando em cima dela, e que patati-patatá, que não sei o quê, não sei o quê, e aí, para me desculpar, eu acabei por lhe abrir o jogo. A jovem estudante me ouviu com atenção e, comovida, até fez o pré-gesto de quem pretendia me ceder o lugar, ao que agradeci e disse àquela altura já não ser mais necessário, porque, ela acreditasse que não era mentira minha, já havíamos deixado para trás o único local onde eu sou incumbido por de um monstro salvar uma criança.
           A moça passou do ponto em que deveria descer e me acompanhou até o portão do Jornal, de modo que ficamos eu, ela e o porteiro da firma a discutir formas de escrever essa história, como se fosse a coisa mais fácil do mundo, e aí, atrasado, eu fingia que concordava com tudo, “hum-hum, hum-hum, pode ser, essa ideia é boa, vocês estão certos”, mas por dentro sabendo solitariamente que não é fácil assumir, não desta vez, a condição de simples literato, porque quem convive com o tom melancólico da cena paralisada sou eu, e quem tem pesadelos nessa porra sou eu, e não pensassem eles que é assim tão fácil alcançar a loucura.    
O perigo que ronda a menina do conto - esqueci que deveria logo mencionar -  é um organismo vivo que a espreita silenciosamente e que a correnteza daquele poço de esgoto, por tê-lo obstante em seu percurso, destaca da cena. Percebo a sua presença porque uma parte da sua estranha composição se sobressai na superfície, exatamente como também é percebido no oceano um tubarão, e aí ele não consegue esconder de um espectador acidental o seu gigantismo e a sua dedutível feracidade.
O bicho, pois, parece pronto para o bote. Parece-me um animal faminto, daqueles que exigem música de suspense, embora não me mostre o quão afiados podem ser os seus dentes e as suas garras. Entretanto, de algum modo, eu o tenho certo como um sanguinário. A beira do lago imundo é costumeiramente tão inabitada, afinal, e a jovem moça lhe pode ser uma presa fácil, do tipo que nunca lhe ocorrera antes, eu imagino.
             Acontece que, desde o primeiro dia em que este esboço maldito de idéia para escrever um conto me surgiu, eu não consigo terminar a história. Não consigo matar a menina. E nem consigo lhe ceder o direito de fuga. Não aqui em casa, apesar do conforto da cadeira e do barulho inspirador do ventilador. É esta, pois, uma história que não se conta com um teclado. Fui consultar Koch, mas não encontrei registro de nada parecido. Ele certamente diria que é só um bloqueio criativo meu. “Se lhe falta criatividade e se a sua história não sai do lugar, então pode ser a hora de desistir e de procurar algo melhor para fazer, ao invés de submeter à leitura de um texto desconexo os amigos e correr o risco de perder as amizades”, deve sentenciar o autor, numa das páginas do livro que ainda não toquei.
          Na tentativa de dar fluidez ao conto, a primeira coisa que faço quando entro no ônibus é sacar o bloquinho de anotações. Busco os detalhes. “Tudo bem”, digo a mim mesmo, “aceito descrever apenas o clímax, vamos lá”, já que, tal qual um retrato, a cena me parece imobilizada pela minha incapacidade de lhe dar propulsão: dia após dia, parece se mover na menina apenas uma mecha de cabelo, e as suas mãos permanecem ainda enxutas, como se da capacidade do contista em fazê-las submergir n’água dependesse o cessamento da sua sede. “Vamos lá, quadro, me dê mais um pouco de detalhe. Quero apenas os detalhes”. Nada.
              Já. Já desci do ônibus pra ver se, oh, que maravilha, a história se desenrolava, se o bicho comeria a menina, se a menina comeria o bicho ou, então, se a menina me perceberia e correria em minha direção, agradecendo pela minha coragem, e aí todos nós poderíamos, enfim, prosseguir com as nossas vidas, eu pondo aqui um ponto final e vocês leitores se despedindo da leitura, sem grandes indagações e lamuriosos por terem lido um conto de péssima qualidade.
         Mas não. Ela não aparece quando desço e paro defronte àquela podridão, sob os olhares desconfiados dos transeuntes, para os quais não é todo dia que se vê um maluco parado diante do nada, com uma mão sobre o rosto a evitar o sol e outra a segurar um bloco e uma caneta toda mordida, fazendo caras e bocas estranhas, em inquisições literárias que não dá para compreender.
             Retorno para o lar todas as noites com essa inquietação. O culpado é sem dúvidas o professor Koch, que me fez acreditar, ainda nas primeiras páginas do livro, que o mais importante para se lograr êxito ao se aventurar por um romance ou um conto é começar a escrever – e começar logo. Foi o que eu fiz, professor, apesar da falta de uma boa história para contar. No final das contas, resta somente um pedido de desculpas ao leitor, porque a menina não morre e nem tampouco vive: quem precisava urgentemente de um copo com água era eu.

RF

Comentários

Anônimo disse…
muito bom; bora atualizar mais aê!
Unknown disse…
Gostei. Deverias escrever mais Rafael.

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