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Um louco em Itapuã

Diz-se acima de tudo, apesar de haver discordâncias, que ele foi até lá só para ouvir o mar e para sentir o tal do arrepio tão insistentemente melodiado por Caetano. Os circunstantes teriam demorado a notá-lo: ele teria passado grande parte do tempo escondido sob um jornal. A manchete, parece, aludia ao início do horário de verão. Diz-se que ele se encantou com o mar e tirou foto com a famigerada sereia. Burburinhos por aí dizem que ele teria ficado feito um besta, um bobão, contemplando o sol dourando as bundas e admirando os banhistas imergindo n'água e emergindo d'água. Diz-se também, mas ninguém dá conta de provar, que ele beijou o rosto de Cira e lhe confessou com baixa voz ter degustado ali o melhor acarajé da Bahia, perguntando-lhe em seguida qual a procedência daqueles camarões gigantes e, antes mesmo que ela interrompesse o sorriso para responder, emendando com um inquerimento sobre se a cerveja por ali era de fato gelada, porque teria ele muito interesse em se dedicar a não fazer nada por durante toda a manhã e a consequente tarde. Há depoimentos de que a Baiana era só gracejos. Até que o louco quis saber se a segunda letra da sua graça era um I ou um Y, e teria se adiantado a pegar um bloquinho para anotar. A versão mais repetida entre os que contam o causo é a de que Cira teria mudado de feição, largado à sorte do azeite a fritura da comezaina e o ameaçado com a sua colher de pau quente, dizendo que o seu nome não poderia ser com Y, jamais poderia ser, porque ele não estava diante de uma brasileira metida a besta. O rapaz teria baixado a guarda, se ajeitado entre segurar o jornal, a máquina fotográfica, o bloco de notas e o acarajé e se sentado à primeira mesa, sem sequer ter antes averiguado se nela já havia ocupação. Havia. A hipótese encontrou controvérsias, não é unanimidade, e é possível, sim, que tenha sido engano. Aposta-se, contudo, que havia mais alguém na mesa. Mas o louco teria demorado a perceber. Quando, enfim, percebeu, teria perguntado à sua companhia:
  • Aceita um pedaço?
  • Não. Não gosto de acarajé. Obrigada – ela teria respondido e se surpreendido ao ver a reação do louco, que riu de prontidão.
  • Como não, menina? Já provou?
  • O cheiro me enoja.
  • Mas o gosto pode lhe surpreender.
  • Não. Obrigada. Mas não gosto, mesmo.
  • Tem certeza? Já sei. Você não é daqui, é?
  • Não sou.
  • É por isso, então, menina – ele teria concluído e, em resposta, parece que ela deu um primeiro sorriso, talvez por conta do modo engraçado como a última palavra fora pronunciada pelo sotaque dele.
  • Pode ser. Não me acostumei com a culinária daqui. Não gosto de azeite.
  • Do que você gosta, então?
  • Você não sabe?
  • Não. Esqueci. Juro que esqueci.
  • Como assim, você esqueceu, Rafael? Se quiser que eu, ao acordar, me comova ao ler o seu texto, terá que dizer o que gosto de comer.
  • Mas eu esqueci, meu amor.
  • Tente se lembrar de tudo o que já comemos juntos.
  • Eu lembro. Mas foi tudo muito circunstancial. Não lembro de tê-la visto arrotar de satisfação. Mas sei que você gosta da pipoca do cinema.
  • Não vale.
  • De Pizza.
  • Também não.
  • Já sei. Já sei, biscoitinha – e todos dizem que ela lhe deu outro sorriso.
  • Então diga.
  • Você gosta de cerveja com sal e limão.
  • Esqueça isso. Talvez me convença a ler o seu texto (que, aliás, já está ficando chato), se me mostrar que lembra qual foi a primeira coisa que você me disse, quando nos conhecemos.
  • Eu disse “boa tarde, flor da tarde”. Eu sempre digo isso.
  • Isso só mostra que nunca fui especial.
  • Mas é claro que não foi isso o que eu disse, meu bem. Estou brincando. Quer tomar uma cervejinha?
  • O que foi que você me disse, então?
  • Vamos mudar de assunto.
  • Eu vou embora.
  • Ei, tem gente lendo a gente conversar. Não me faça passar essa vergonha. Você sabia que eu divulguei isso aqui nas redes sociais?
  • E daí?
  • E daí que eu o fiz de coração. O fiz porque estou com saudade de você.
  • Você está é me expondo, isso sim.
  • Não disse em momento algum qual é o seu nome, disse? Ninguém nem suspeita, menina.
  • Você está achando bonito isso, não é? Colocando palavras na minha boca. Esqueceu que não retorno as suas ligações há três meses?
  • Não. Não esqueci.
  • Pois bem. Mudei, querido. Hoje, você não faz nem ideia de como os meus lábios se comprimem para formar o meu sorriso. Não sabe quão longos andam os meus cabelos. Ainda os imagina curtos, né? Mudei de perfume também, tá? Há-há. Só para que fique sabendo.
  • E você tá adorando as palavras que estou fazendo você utilizar, né? Confesse.
  • São as melhores que você tem, querido?
  • Adoro você.
  • Idiota. Pare, porque eu não quero mais ler. Aliás, eu tive vontade de largar isso a que você chama de conto lá em cima, quando começou com aquela baboseira sobre acarajé, mas fui solidária com você.
  • Vou te ligar.
  • Sabe que não vou atender.
  • Não lhe interessa nem saber ao menos o que tenho a tratar contigo?
  • Se isso nos levar ao ponto final desse texto ridículo, sim.
  • Quero reencontrar você. Estarei aqui mesmo, neste mesmo lugar, sob esse ar maravilhoso de Itapuã, às dez horas do próximo domingo. E tenho fé que dessa vez você virá.

    RF

Comentários

Anônimo disse…
Ah, que texto espetacular!
Era tudo o que eu precisava para ter uma boa noite de sono: lembrar da voz serena de Caetano caetaneando Itapuã; Sentir o cheirinho do mar que intensifica na Sereia; Sorrir quando o louco indagou a baiana Cira; e enfim acordar uma parte de mim que eu teimei em guardar: Saudade.
Parabéns! Muito Obrigada!
Unknown disse…
Adorei. Embora tenha ficado um pouco enciumada. Eu, certamente, teria aceitado o acarajé. Sei que passei por lá no domingo, e se soubesses que estavas triste por esperar qum não voltaria, teria lhe feito cia.

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