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De quando escrevem por mim

-        Dificuldades para escrever, amigo?
-        Quem é?
-        Sou eu, amigo. O seu bloqueio criativo.
-        O que você quer?
-        Fazê-lo desistir mais rapidamente dessa vida. Agir em silêncio com você, um projeto de escritor fracassado, tem me cansado muito. Você escreve muito mal, mas não encontra nessa vida quem corajosamente lhe diga isso. Eu quero me livrar logo de você. Trate de desistir, portanto. Vejo que está aí nesse computador há horas, tentando escrever. Pretende publicar um texto naquele troço horroroso a que chamam você e mais alguns de blog, não é?
-        Quero muito.
-        Mas não consegue formar nem mesmo o mais ínfimo dos pensamentos, estou certo?
-        Sim.
-        Estou vendo que sim. Deu-me uma respostinha curta, sem muitas divagações. Gostei de ver. Estou fazendo efeito. Não adianta ler todo aquele monte de textos como anda lendo. Não adianta encher o quarto de livros, como tem feito. Falta-lhe criatividade, hein? Justamente ela. Vacilante, vive tirando férias. Deixa-lhe à sorte do abandono frequentemente e você ainda insiste em inchar o próprio ego de modo ridiculamente abobalhado. Ela sai; eu entro, cara. Ansiava por essa conversa contigo. Ansiava por esse delírio seu de pensamento: não sei o que lhe faz acreditar-se inteligente. O que lhe dá essa certeza? Nunca percebeu que, quando não me faço presente, vocês, metidos a espertos, têm apenas lapsos de sabedoria? Lapsos. Ouviu bem? Você, aliás, já pode se considerar em final de carreira. E esse seu blog? Anda muito mal das pernas. Tenho visto. Pouquíssimas publicações. Não teme perder a parca audiência do blog, não?
-        Demais.
-        Então. Vamos resolver isso, cara. Ajudo-lhe: deixo você publicar um textozinho qualquer. Dou-lhe alguns minutos. Estou aqui há mais de um mês, afinal. Posso fingir um descuido. Mas, fique sabendo: quererei algo em troca. O que pode me oferecer, para que eu dê um passeio e repouse na cabeça de outro cidadão?
-        O que você quer?
-        Vou pensar - coisa que você não pode fazer. Há-há-há. Vou pensar e lhe digo. Mas, na verdade, não sei ainda se quero mesmo lhe abandonar. Estou orgulhoso do meu sucesso sobre você. Nunca mais havia sido tão eficiente. E você? Nunca mais se ousou a arriscar uma mesóclise, hein? Metáfora, então, nem se fala. Estou gostando de ver. É menos um candidato a escritor nesse mundo. Menos um jovem querelante. Estou cansado disso, sabia? Estou farto dessa empáfia em vocês. Metidos a grandiloquentes. Imbecis. Vocês não são nada. Na-da! Ouviu bem? Como podem se julgar donos de si e do mundo, se não conseguem driblar um ser abstrato como eu? A vida é simples, amigo. Vocês querem complicar demais. Pensam o mundo com um hermetismo detestável. Querem dificultar, criar teses e desenvolver raciocínios para justificar tudo aquilo que é simples. É por isso que, vou lhe dizer, vou lhe confessar, é por isso que sou filho de Epícuro. Não sabe quem é, não é? Tá vendo? Você leu um Tolstoi, um Shakespeare ou um Monteiro Lobato desses da vida, pelo menos, filho? O que você leu, playboy? Eu sei bem a pouca merda que você leu. E, lhe digo mais, é insuficiente. Tudo o que leu é muito insuficiente. Eu não preciso nem atuar sobre você, porque você, por si só, já tem as suas deficiências, já é um imprestável. Aposto como você, mesmo sem a minha influência, é agora incapaz de criar um parágrafo.
-        Não é bem assim.
-        Como assim, não é bem assim? Vai me dizer que estou enganado, então, cabeça de vento? Com que argumentos? E você lá conseguirá formar alguma frase para replicar o que digo? Quer um dicionário? Ha-ha-ha.
-        Não.
-        Por que não? Eu posso clarear algumas palavras pra você. Posso fazer você redescobrir alguns verbetes e lhe emprestar alguns conectivos. Isso lhe renderá um parágrafo. Que tal? Deixa de orgulho, vai. Tenho visto a sua inquietude. Não consegue dormir sem antes tentar formar um pensamento. Aliás, sabe o que acho mais engraçado? Vou lhe dizer. O mais hilário é ver você tentando imitar a escrita daquele escritorzinho conterrâneo seu. Aquele ali me escapou. Desgraçado. À época do primeiro livro dele, eu andava muito atarefado, matando de desgosto uns e outros na Europa. Mas como é mesmo o nome dele?
-        João Ubaldo.
-        Isso. Esse mesmo. Agora, fale sério: achava mesmo que os projetinhos de textos que você escrevia poderiam vir a ser algum dia comparados aos dele? Eu respondo por você: é claro que não! Tem gente que nasce com o dom, isso eu devo admitir. Nasce com o dom e tem vocação para se esconder de mim. Coisa de que você é incapaz. Ha-ha-ha. Agora, porque estou gostando da conversa, serei ligeiramente legal com você: vou lhe contar algo que jamais contei a outros perdedores, nesses anos todos de batalha. Vou me aproveitar do seu estado deplorável e vou lhe confessar algo. Preste atenção. Está me ouvindo bem?
-        Estou.
-        Tem gente nesse mundo que é inalcançável. Existem pensadores escondidos por aí. Vivem secretamente. São os verdadeiros escritores. Pessoas a quem não tenho acesso, apesar de ciente das suas existências.
-        Como assim?
-        Você acredita mesmo que todos esses escritores de sucesso o são por total mérito próprio? Uma porra! Esse mundo literário é cheio de mistérios, amigo. Tem gente que ganha dinheiro para não aparecer. E não são poucos, não. Vou lhe dizer por quê. Existem dois escritores famosíssimos, por exemplo, que eu marquei desde quando esboçaram as primeiras tentativas no mundo das letras. Exerci sobre eles total domínio, tenho convicção disso. E, lhe garanto: os deixei completamente incapazes de publicar até mesmo, até mesmo um lixo como “O Aleph”, daquele bostético brasileiro, hoje um cidadão cosmopolita.
-        Paulo Coelho.
-        Isso. Entende o que digo? Pois esses tais dois cidadãos dos quais lhe falo são hoje uns dos mais lidos em todo o mundo. Percebe o que quero dizer? Alguém lhes vende manuscritos completos e eles apenas os entregam às grandes editoras. Eu suspeito de mais coisa ainda. Vou lhe contar. Esses caras, esses escritores que o mundo adora como se fossem deuses, agem às escondidas. Eles organizam conferências, cara. Eles sabem de mim. Passam incólumes sob as minhas ações. São os nossos maiores inimigos. Nosso, quero dizer, digo nosso para me referir a um grande time. Existem dois times. Não sei se devo lhe contar. Contarei. Ouça bem o que lhe direi agora: a alta literatura é um império, e é para poucos, porque eles, os grandes literatos, fazem parte de uma grande seita. Organização da qual eu sou o maior agente. Eu anulo a concorrência. Perdoe-me pela breve alteração na voz. Estou mesmo emocionado. Matei grandes talentos, cara. Sufoquei grandes ideias. Você sabe o que é isso? Você sabe o que é ter que conviver com essa culpa?
-        É a sua natureza.
-        É. E ela de vez em quando tem essas recaídas, mas logo consigo me recompor e dar continuidade ao trabalho. Vou terminar de liquidar as suas ideias. Terminarei de exterminar você. Desculpe-me, mas tem que ser assim. Reconheço a sua resistência. Você é um lutador rude, mas um lutador, devo reconhecer. Sinto muito, mas você não faz parte do nosso time. Desliga esse computador e vai dormir. Você é um fracassado. Por que não desiste e vai tentar ser outra coisa nessa vida? A criatividade lhe abandonou. Mesmo que ela se arrependa, não deixarei que lhe reencontre. Deixou-me contigo por muito tempo. Tenho predomínio sobre a sua mente. A manterei nesse estado vegetativo em que se encontra. Esqueça a carreira de escritor. E mande que fechem aquele blog. Mas antes, me diz: como se sente, hein? Como se sente, sabendo que não mais será lido por aquela quantidade diminuta de leitores? Entrega-se, por fim? Rende-se a mim?
-        Não.
-        Como não? Já lhe disse que não mais deixarei você escrever e nem publicar nada. A não ser que queira ser humilhado publicamente. É isso o que quer? Quer ter o mesmo destino dos milhares de escritores fracassados por aí? Quer ser lembrado apenas por um código de ISBN e nada mais? Quer ser um, cá entre nós, você quer ser um Paulo Coelho? Há-há-há. Aquele ali me pagava direitinho por voltas que eu dava em quarteirões. Mas, mesmo assim, há-há-há, ele só pensava merda. Hoje ele é o que é: queridinho dos incultos; detestado pela elite. E você? Você é até perseverante. E isso eu até admiro. Mas não posso ceder. É o seu fim.
-        Desculpa, amigo, mas esse ainda não é o meu fim.
-        Como assim, juvenil?
-        Hoje publicarei um texto, sim.
-        Há-há-há. Você está aí muito mal, amigo, incapaz até mesmo de separar vogais de consoantes.
-        Tenho um método.
-        Há-há. Que método?
-        O da transcrição.

RF

Comentários

Anônimo disse…
Hahaha... ri muito. E ri porque o 'bloqueio criativo' afeta a todos nós. Às vezes é falta de tempo, em outras é excesso dele. Mas a inspiração um dia volta... ESPEREMOS!!!

MASARACHAMADOGO
Anônimo disse…
boa ;)
Unknown disse…
Fantástico, sobretudo, o final.

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