No meu tempo de repórter, rum, me extasia ter que lembrar, a redação enlouquecia, quando o mundo não nos abastecia com notícias. Sei que há quem diga, mesmo os que são do ramo, que isso é uma lenda, que notícias se tem todos os dias, porque o mundo não pára de girar e porque os acontecimentos nos são elementos de grandeza irascível, faz parte da vida, a ciência é capaz de explicar e tudo o mais. Digo que não, que é possível inexistirem fatos noticiosos num intervalo de 24 horas, sim, porque a notícia, eu tenho certeza, é uma entidade, um organismo quase vivo que dispõe de vontades próprias e que pode e sabe muito bem fazer uma merecida de uma greve.
Quando começo a relatar essa abstinência jornalística para quem muito raramente em minha residência me visita, geralmente o visitante arruma uma desculpa, não faz muitas cerimônias, me toma como mentiroso, me agradece pelo cafezinho e vai embora, desprezando a cordialidade de dona Miríades, minha desde todo o sempre empregada doméstica, a quem ordeno que seja invariavelmente gentil para com quem me é chegado, por mais desmerecedor, mais cético e mais impaciente que ele seja.
Costumo similarmente contar que no meu tempo não havia esse caminhão de facilidades que têm hoje esses jornalistazinhos de plantões, cada um com um computadorzinho a tiracolo e tantos outros recursinhos mais, que eles mesclam a uma vaidade desmedida, rum, cheios de não-me-toque, não gosto nem de mencionar. No meu tempo, não. No meu tempo tinha, sim, era uma ditadura militar nos aguçando a criatividade de um lado e, do outro, editores que diziam repetidamente “deadline, deadline e deadline”, e muito frequentemente – e isso é mesmo de se pasmar – apenas isso dizendo por durante todas as horas do dia, sem precisar mesmo muito mais nos dizer, porque já nos era o suficiente para reconhecermos o nosso atraso, a nossa incompetência e a nossa prescindível existência. Escrevíamos debaixo de porrada, e alternadamente ainda por cima, um de cada vez, na inesquecível e única remington da redação.
Quando nada de noticiável nos aconteceria, rum, tristes recordações, sabíamos logo pela manhã. E se podia perceber logo pela tranquilidade da aurora, quando acordávamos sem o galo cantando ou com o canto do galo (dependendo aí do que nos fosse normal, para não virar notícia) e pelo relativo silêncio circunvizinho, porque a notícia, quando queria tirar férias, ela tirava mesmo, e dispunha de todos os recursos para tornar aquele dia um dia normalíssimo e, se duvidássemos, até mesmo nos invadiria as nossas caixinhas de pensar e nos furtaria as eventuais idéias para as pautas que tivéramos elaborado no dia anterior ou que pudessem durante o restante do dia presente nos ocorrer.
Tudo era devidamente cuidado para que não levantássemos as sobrancelhas, para que nada nos parecesse incomum, e para que as horas corressem, mas não tão depressa, porque se tão depressa corressem, poríamos a manchete no dia seguinte, em negrito, noticiando que, no dia anterior, o tempo correra tão depressa como nunca tão depressa correra antes. Tudo era devidamente calculado por ela, a notícia (ela mesmo, a soberana, aquela que sempre pusera o pão dos meus filhos sobre a mesa), e éramos mesmo capazes de pressentir, já nos primeiros raios de luz que nos invadiam as retinas, que aquele seria um dia diferente, custasse o que custasse.
Quem tinha portes de armas, ia armado para a redação, porque, se tem uma coisa que os grandes jornais devem respeitar, isso nos alertava Gumercindo Miranda, editor-chefe como nunca nessa terra se vira igual, “é a curiosidade do leitor”. Miranda nos pedia, aos portadores de revolveres ou pistolas, mais precisamente, que, quando fosse o dia de folga de dona notícia, nós, os ditos jornalistas, nós, os portadores da informação, os formadores de opinião, os defensores da verdade e da justiça, os membros do incorruptível quarto poder, deveríamos dar conta de algum acontecimento, fosse necessário o que fosse, até mesmo a interrupção de algumas vidas, de preferência vidas de grande notoriedade, podendo até mesmo esta necessidade ocasionar na morte do prefeito ou do governador, com um tiro silencioso na testa ainda por cima, para que os jornais concorrentes não tivessem pronto conhecimento, a fim de garantirmos um furo para o dia seguinte, ou a edição do dia seguinte, melhor dizendo.
Por volta das dez e meia da manhã, mais ou menos, que era quando até mesmo o mais lesado dos repórteres já havia na redação adentrado, instalava-se um silêncio que somente o pigarrear do Sr. Gumercindo era capaz de irromper, fazendo ele aquele seu rum-rum, muito mais por necessidade de nos fazer reagir, lhe contando de imediato qual o acontecimento que acreditávamos merecer ocupar o posto de manchete do dia, do que por necessidade sua de garganta.
Almoçávamos todos em silêncio, e nem mesmo o gosto da comida do nosso odiado refeitório poderia virar notícia, porque era o mesmo gosto, o mesmo destempero presente no mesmo feijão com arroz. Os pedaços de carne eram geometricamente os mesmos, e, se não eram, pelo menos nos fazia lá ela acreditar que eram. Nada, aliás, em todo o mundo, sofria algum tipo de variação, acho que já me fiz entender. Os discursos políticos até aconteciam pelo mundo, mas, apesar de que a eles nos doássemos com todos os ouvidos atentos ao rádio, nada de relevante saíam das bocas de vossas excelências. Raiva dava dos delegados de polícia, rum, devo admitir, aqueles vermes. Passavam eles o dia todo ocupados, não sei com o quê, aquilo nos era um aviltamento enorme: não nos davam eles nenhuma ocorrência, nem mesmo justificavam a desatenção que nos prestava com noticiáveis caganeiras que poderiam lhes ter acometido ou qualquer falta de natureza outra qualquer, parecia mesmo uma grande conspiração.
Já não saio mais às ruas nesses dias em que pressinto a falta dela, mas, juro, eu sairia, mesmo que na presente condição de aposentado, só não saio porque estou muito velho e porque cada vez mais uma indisposição se me domina. Dá-me cá uma preguiça até mesmo de escrever. Sou hoje apenas um velho falante, sem grandes preocupações com as vírgulas, porque confio muito na minha Miríades, que anota tudo o que quero escrever e que, aliás, tem curso superior incompleto, fala fluentemente um inglês que lhe ajudei a pagar e já está muito mais familiarizada com essas modernices do que eu, tendo já se tornado grande digitadora, apesar de também já na terceira idade, uma senhorinha de sorriso amistoso e de bunda formidável.
Talvez, num dia futuro desses, quando na atividade costumeira de se sentar defronte a mim para me pôr a par das últimas dos dias, Mirinha me surpreenda com a ausência da santificada, apesar de que eu acho esse um acontecimento muito difícil, porque esses moderninhos de hoje não respeitam mais o descanso de ninguém. E, se a dona lhes impuser um dia seu de descanso, esses neojornalistas metidos a bestas se encarregarão de, completamente alheios ao nada soberano que se instala no universo, continuar a nos submeter ao que já nos submetem em todos os santos dias: à leitura de notícias por eles inventadas.
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