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A vida de Zé Lindão



Seu José Predestinado da Silva, mais conhecido como Zé Lindão, é um cara sagaz, de grande personalidade, e dono de uma das melhores histórias de vida que eu já ouvi. Hoje, já pelos seus 75 anos, ele recorda o seu passado com grande entusiasmo, alargando um sorriso que quase já não sai tão perfeito, mas que demonstra grande satisfação e orgulho pela pessoa que foi. Trata-se de um senhor tranqüilo, diferente daquele rapazote agitado que fora durante toda sua vida. Também, com a vida que levou, não tinha como ser mesmo de outra forma. Conheci o Predestinado por acaso – um acaso tão difícil de acreditar quanto à história que ele me contou. Foi numa clínica de doadores de sangue, bem distante do caos urbano, bem longe da confusão da cidade. Deitado na maca, dentro da sala específica dos doadores, seu Zé descansava, parecendo esperar alguma pessoa ao lado, para contar-lhe toda sua história. Pela mais pura sorte, pelo destino – que eu não acreditava antes desse episódio -, eu acabei sendo o próximo a ser chamado, após 10 pessoas terem deixado a clínica por medo da seringa.  Havia apenas quatro macas, e o tempo aproximado da doação de sangue era de 30 minutos. Foi o tempo necessário para conhecer aquele nobre senhor e a sua incrível história.
Para começo de conversa, ele me contou que em toda a sua vida morou em uma única cidade. Não quis revelar o nome, mas confessou: “Lá é o paraíso, só fui embora por que envelheci.“ Não entendi muita coisa, mas ele continuou a me contar a história. Disse que sempre viveu lá e que nunca, nunca, viu outro homem neste lugar. A cidade tinha apenas mulheres. Só mulheres! Loiras, negras, morenas, índias, ruivas, todos os tipos de mulheres. Lindíssimas. As mais lindas do mundo estavam lá. Disse-me que nem esta enfermeira, que está colhendo o sangue dele – que por sinal é lindíssima –, conseguiria adentrar naquela cidade por ser feia – se comparada às suas vizinhas. O seu sobrenome parece não ter sido por acaso. Imagina-se que Deus resolveu abençoá-lo com a maior sorte entre os homens da Terra. Só podia ser coisa do divino mesmo. Nada mais explicaria situação tão fortuita.
Desde a infância, Zezinho – como começou a ser chamado – já aparentava ser diferente. Não tinha muito que fazer na pouca idade: não existiam outros meninos para ele brincar. Cresceu vendo outras garotas brincando de boneca, passeando com os seus cachorros – uma pausa aqui. Os outros machos que havia na cidade eram os cães. -, pulando corda e rodando o bambolê. Zezinho se sentia sozinho e triste, mas sempre teve em mente que a sua vitória viria com o passar dos anos, que toda aquela solidão se transformaria maravilhosamente ao seu favor. Sua infância não teve muita graça, pois era uma porção de mulheres puxando-lhe a bochecha e dizendo: “olha só que coisa fofa, gente!”; “ele será a salvação da cidade!”; “quando crescer vai namorar a Mariazinha!”; “nada disso! Vai namorar a Julinha!“.  E a disputa começava ali pelo único homem da cidade, ainda com oito anos.
Sua primeira paquera foi a Lívia, que tinha 16 anos. Ela era uma loirinha lindíssima, dos olhos azuis da cor do céu. Zezinho já tinha 12 anos. Eles se encontraram depois da missa das “Mulheres de 30”, que rezavam o tempo todo para aparecer mais homens na cidade. Foi ali, atrás da igreja, que eles se beijaram pela primeira vez. Zezinho sentiu o gosto que tinha a boca de uma mulher e, a partir desse dia, não mais se esqueceu daquele sabor. Era um mundo novo para ele. E ele estava gostando. Nessa mesma semana, se encontrou com a Fabiana, atrás do mercado; com a Júlia, atrás da lanchonete e com a Sônia, atrás da biblioteca. E assim começou a vida de Zezinho que, logo aos 15 anos, era chamado de Zé.
Zé estava conhecendo quase todas as 560 mulheres da cidade, dia após dia, beijo após beijo. No dia do seu aniversário de 16 anos, s Sra. Matilde, mãe da belíssima Raíssa – uma negra espetacular, de olhos claros, cabelos encaracolados e sorriso contagiante -, levou a sua filha de 19 anos ao aniversário do único garoto da região. Eram 45 pessoas no aniversário, dentre elas o próprio Zé e a mãe do aniversariante, a Dona Aurora. Aurora era a mulher mais respeitada da cidade, porque era a única que tinha um “filho homem” e todas as mães se aproximavam dela para tentar casar sua filha. Zé, quando viu Raíssa com o presente em mãos para lhe dar, disse: “vamos subir, Raíssa. Você pode colocar os presentes lá em cima”. Garoto esperto. No quarto, ganhou dois presentes de uma pessoa só. Foi a primeira vez dele. Ele jamais esqueceria – ou talvez sim.
Dona Aurora foi, por muitos anos, o grande escudo de Zé, a defensora do filho, diante dos avanços das meninas da cidade. Ele tinha 19 anos quando ela faleceu. Entristeceu-se. Tentou mudar. Mas, naquela cidade, não havia alternativa. Ele era o refúgio das solteiras, o desejo das depravadas, o sonho das virgens. Ou seja, ele era o Don Juan da cidade, o Salomão, o Cristo, o Messias, o Rei. Ele ganhou esse status quando Dona Aurora passou para outra vida. O caminho delas estava livre. A cidade agora era de Zezinho, Zé, o Zé Lindão.
José Predestinado virou o Zé Lindão aos vinte anos de idade. Não tinha mais família, não tinha mais ninguém além daquelas loucas e desvairadas mulheres que o perseguiam. Resolveu ir ao psicólogo. Psicóloga. Contou tudo o que estava sentindo à Dra. Tatiana Swchauws, que respondeu com um pulo sobre a mesa, uma arrancada de camisa e uma chave de coxa. Problema psicológico resolvido – ao menos para a doutora.
Zé Lindão resolveu abrir um estabelecimento chamado “Zé Utilidades”, no qual ele se dispunha a ajudar toda a população mulherística com serviços hidráulicos, elétricos, pneumáticos, mecânicos e alguns outros de interesse das moradoras. No primeiro dia, Mariazinha ligou para Zé, pedindo pra ele trocar a lâmpada da casa dela que havia queimado. Lindão fez o serviço e como agradecimento: cama. Na casa de Tereza, faltou água, Zé resolveu e... cama. E assim se sucedeu o seu trabalho durante anos.
Até que um dia as namoradas de Zé resolveram criar a “Cooperativa das namoradas de Zé Lindão”, que procurava definir os dias e os horários de cada uma, os lugares para onde iriam e quais as punições em casos de infração das leis criadas.  Quem presidisse a Cooperativa tinha o direito de fazer reuniões semanais com o Zé, num escritório específico, além de fazer valer o seu mandato durante dois anos. Era o sonho de todas as moradoras terem ainda mais intimidade com o Zé – se é que isso era possível.
Aos 25 anos, Lindão já havia ficado com metade das mulheres da cidade. Aos 40, ele completou os 100%. A CNZL (Cooperativa das Namoradas de Zé Lindão) resolveu abrir um concurso público rigorosíssimo para a admissão de novas – e belas também – garotas para conhecer o Zé e viver naquela mística cidade.  Essa decisão passou a ser constante sempre quando ele já conhecia todas as mulheres dos pés à cabeça. A cidade aumentou, eram 850 mulheres mais o herói. E o 100% ainda estava sendo mantido.
Sempre que Zé precisava de ajuda, vinha uma mulher lindíssima – afinal, todas eram assim - e o ajudava. Estava mal de saúde, chamava uma médica. A doutora, ao invés de tratar de sua saúde, partia como uma desesperada pra cima dele, rasgando sua camisa e dando fim à consulta. Precisou ir à dentista, deitou na cadeira odontológica e por lá ficou. Já não enxergava bem, foi à oftalmologista e acabou vendo demais. Era sempre assim. Todo serviço social que era prestado ao Zé vinha acompanhado de segundas intenções. Ele não agüentaria por muito mais tempo: já tinha 60 anos.
Zé Lindão resolveu fazer uma comitiva para falar com todas as mulheres da cidade. Agradeceu por todo o tempo em que estivera lá, se disse muito feliz, porém cansado. Não era fácil suportar aquela sede das mulheres. Além do mais, ele já não tinha mais disposição para tanto. Anunciou que partiria em alguns dias. Comoção geral. Todas as 1500 mulheres choraram rios de lágrimas sem parar. Ele só conseguiu partir, de verdade, após 5 anos dessa comitiva, pois estava consolando todas as moradoras, uma por uma. Lá ele foi rei: fizeram uma estátua do Predestinado na entrada da cidade.
Deixou aquela vida para trás em busca de uma nova vida. Queria ser normal, queria descansar em paz. Estava certo de que o seu sangue era diferente e resolveu doá-lo. Resolveu que tinha que compartilhar essa benção com alguma outra pessoa. Ao meu lado, deitado na maca, ao ver o meu rosto de perplexidade, ele disse:
- Ouça, garoto, o que vou lhe dizer. Desde cedo aprendi isto, mas nunca o pratiquei. Em minha vida foi impossível.
E então ele arrematou com um olhar profundo e com o balançar do seu dedo indicador a me apontar: “Aquele que conheceu apenas a sua mulher, e a amou, sabe mais de mulheres do que aquele que conheceu mil.“
Ao terminar de dizer esta frase, percebi o rosto da enfermeira avermelhar-se de vergonha, como se toda aquela história contada fosse para que o paciente chegasse até ela. A enfermeira ouvira toda a história desde o seu início, e o brilho dos seus olhos não negavam que ela se apaixonou em apenas 30 minutos. Se a história contada é verdade ou não, ninguém sabe. Mas não importa: eles ainda terão bastante tempo para construir outra ainda mais bonita. 

GF

Comentários

Anônimo disse…
Cidades imaginárias, irreais! Saramago, Mia Couto, entre outros escritores, criaram muitos locais assim, inusitados. Em seu 'Antes de Nascer o mundo', Mia Couto cria uma cidade sem mulheres. Você fez o inverso! Uma leitura simples e agradável. Um bom texto.

MASARACHAMADOGO

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