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Extenuação e delírios de livraria

Sofremos nós, os vendedores de livros, alguns reveses em nossa rotina de trabalho que certamente não constam das pautas dos sindicatos dos livreiros e cujas explicações a ciência, dona de todas as razões e que recebe de todos nós, os ignorantes, o mesmo tratamento dispensado a toda entidade suprema, ainda não deu conta de apurar. Um deles, que me ocorre agora mais ligeiramente à memória, é o assombro de antigos fantasmas que de vez em quando se nos aparecem por lá, sejam eles verdadeiros ou não, não é fácil êxito nessa classificação lograr.
                Devemos admitir que somos nós os provocadores destas aparições, uma vez que, conforme defendia Johny Boy, que já não trabalha mais lá, mas que de vez em quando também como fantasma por lá reaparece, somos nós mesmos os criadores de certas crendices e de certas histórias, algumas delas ficcionais, outras nem tanto, que insistimos em compartilhar nalgumas conversas que mantemos às escondidas pelos corredores.
                Um dia desses, não faz muito tempo, Leandro Estandarte, que não era tão chegado assim a livros policiais e de suspense, nos segredou ter visto passar por entre as prateleiras da seção de direito um moço cuja fisionomia e cujos gestos eram idênticos aos do seminarista de Rubem Fonseca, para algazarra geral de toda a nossa equipe, que não perdoou a sua aparente bobagem e caiu de prontidão em cima dele, dizendo que era loucura sua e que ele estava delirando somente porque tivera ele acabado de finalizar essa leitura, uma edição belíssima de cento e poucas páginas, de quase duzentas, na verdade, da editora AGIR.
                Estandarte disse que não era loucura e que, apesar de reconhecer que os retratos dos personagens sofrem variações de leitor para leitor, dependendo aí da imaginação de cada um, afirmação esta consentida por Cassius e por Acacius com breves gestos com as suas respectivas cabeças, o supracitado vulto não poderia representar outra reencarnação senão a do tal seminarista, dado o lento caminhar e o olhar de assassino por ele observados, e que, se não fosse verdade o que estava nos dizendo, ele não se incomodaria em nos pagar, a todos, uma deliciosa rodada de pizzas.
                Tendo Estandarte feito esta aposta, reinstalamos o imbróglio e passamos a discutir sobre quais são os sabores de nossa preferência, até que Linhares, aproveitando-se de um raríssimo espasmo de silêncio, resolveu abrir a boca pra nos dizer que a Sra. Dalloway, cujo sorriso e simpatia Virginia Woolf fora incapaz de esconder, também fora por ela percebida passeando pela seção de literatura, com ar e gestos de uma alva e recatada senhora inglesa, e tendo em seguida se instalado contemplativa frente à estante dos livros estrangeiros em inglês e lá por longo tempo permanecido.
                 A afirmação de Linhares nos causou arrepios, e ninguém se atreveu a dizer que era brincadeira sua, porque ela falava com uma seriedade nunca antes vista em sua face, que se nos é apresentada como sendo sempre uma face marcada por um doce sorriso comum a todas as doces meninas interioranas. Ficamos em silêncio, até que foram surgindo entre nós mesmos, os falsos céticos de outrora, uma a uma, confissões de que também nos são visitantes constantes Toby Temple, Tertuliano, Francisco de Assis Rodano, Jubiabá, Richard Armstrong, Sofia, Sargento Getúlio, Macabéia e tantas outras personagens mais, muito emboramente estas revelações fossem sofrendo interrupções: indagávamos alguns de nós, que ainda éramos desconhecedores de alguns daqueles nomes, a quais livros pertenciam cada um deles e quais eram os seus respectivos graus de periculosidade.
                O fantasma do Estandarte ficou em primeiríssimo lugar, posto que deveríamos acima de tudo considerar a sua irascível letalidade: no livro, anda ele, de quem agora me esqueço o nome, com uma beretta carregadíssima sempre escondida sob o paletó e, conforme vive anunciando em todos as brechas que tem em quase todos os capítulos, segundo o próprio Estandarte nos contou, tem ele uma louca predileção por atirar sempre na cabeça. De imediato, fizemos um sorteio para ver quem passaria a cobrir a seção de direito, pois não seria mais justo com Nisiane que ela continuasse responsável por aquele importantíssimo departamento, agora que sabíamos todos estar sempre por perto um matador de primeira categoria. Ganhei o sorteio. Perdi, digo.
                Desfizemos o motim quando um cliente nos interrompeu com uma pergunta difícil, algo sobre qual o nome do autor de um livro algo parecido, não lembro bem, com Querido John, e aí nos dissipamos, cada um para um computador, em busca de tão dificultosa resposta. Vieram outras perguntas de outros clientes, e fomos naturalmente nos distanciando um do outro, apesar de que, sempre que possível, trocávamos nós alguns olhares silenciosos, todas as vezes em que cruzávamo-nos uns com os outros rapidamente, na correria de um atendimento ou outro.
                Ao final do dia, quase que automaticamente, caminhamos todos na mesma direção e formamos um novo motim. Fizemos nova conferência e os nossos depoimentos foram se revelando ainda mais escabrosos, apesar de alguns que classificamos como sendo de menor gravidade, como o relato empolgado de Mirabel de que lhe dera vontade de sair correndo atrás de Harry Potter, quando ele lhe aparecera, sem os óculos e de bermudão, vestido feito um playboy, na colorida e acalorada seção de livros infanto-juvenis.
Alguém entre nós, talvez até eu mesmo, num rompante, levantou a mão pra pedir silêncio, e nos perguntou por que não houvéramos levantado questionamentos sobre esses acontecimentos antes, ao que Estandarte respondeu pronta e primeiramente que contara o que lhe ocorrera por morrer de medo de enlouquecer. Gargalhamos, mas acabamos por agradecê-lo.
Concluímos unanimemente, por fim, e em seguida fomos cada um para a sua respectiva casa, que muitos daqueles fantasmas não nos visitavam involuntariamente, mas que também não representavam lá todo esse perigo: na verdade, eles atuavam matreiramente pela livraria como lobistas dos livros a cujas histórias pertenceram e, por tabela, soprando aos ouvidos dos clientes do nosso mundo prévias, sinopses e até revelações inéditas das suas histórias, nos ajudam a melhor vender.
RF

Comentários

Anônimo disse…
visitas ilustres

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