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Bola, por que te amo?

Fossem nos meus aniversários, nos natais ou noutras datas igualmente festivas, uma embalagem me fazia sobressaltar o olhar e antever acertadamente o seu conteúdo, dada a geometria inimitável de sua forma. Vinha ela desembalada, na verdade, e quem me presenteava já a trazia nesta condição para que, ali mesmo, onde convencionalmente se desenrolava uma comilança geral de doces e salgados, pudéssemos inaugurá-la, a pelota, de pé em pé, de joelho em joelho, de canela em canela.
Devo eu ter herdado este mal, o de amar assumidamente a bola, aqui mesmo, no meu País, porque, ao que me parece, somente por estas bandas aprendemos nós, hereditariamente, ainda meninos em formação, a gostar primeiramente de uma bola ou de um clube de futebol em detrimento de aromáticos cachos e de corpinhos violões.
Hoje se admite isso com maior dificuldade, é bem verdade, mesmo porque o machismo se nos é quase como que uma imposição da natureza, e passamos mesmo a afirmar que o futebol ocupa o segundo lugar em nossa preferência, sendo esta uma mentira muitíssimo difícil de ser contada, requerendo sempre do mentiroso muito capricho, a começar pela fala mansa e manhosa às suas amadas e a terminar pelas juras de amor após as escapadas às noites de quartas-feiras – ou de terças e de sextas, pois a realidade, hoje, é pior e é outra - frente à tevê ou no retorno para o lar, após experiências sofríveis num estádio.
O brasileiro é amante (quase) confesso da bola e não lhe importa o seu grau de envolvimento com o evento: basta que a redonda apareça rolante entre duas traves – ou entre duas pedras, ou entre dois pedaços de madeira, além de outras variações mil - e que haja uma meia dúzia, ou um quarteto, uma dupla, aliás, no mínimo, de tantos outros aficionados quanto. Estaremos sempre – deixe eu me incluir logo nessa zorra – nas arquibancadas, nas ladeiras, na várzea, na lama, na areia, por entre as pedras ou em qualquer outra superfície, a trotar feito os meninos de antanho em busca de mais um gol, de mais um drible ou até mesmo de um único escanteio conquistado, sendo este último caso ainda mais valioso, se ele vier a render, após a partida, já na mesa de um bar ou no caminho de volta para casa, os comentários mais fervorosos e apaixonados que a bola - carregada já a essa altura por entre os braços de alguém do grupo, geralmente o pior jogador - se gaba secretamente por ouvir.
Sempre que o futebol me comanda os pensamentos, alguns causos até brigam ferozmente um com o outro dentro da minha memória, pra ver quem merecerá ser por mim narrado. Tem um, por exemplo, que é muito bom de briga e do qual me lembro sempre imediatamente. É um causo de um menino amarelo que, recém-chegado em nossa rua, tentava em vão se enturmar com a nossa galera, mas tentava de todas as maneiras, mesmo. Vinha-nos ele sempre com um boneco cheio de nove-horas, com um novo jogo da grow ou da estrela, ou com biscoitos recheados deliciosíssimos, mas tudo isso não sortia mesmo grande efeito, porque ele, após nos permitir um desfrute temporário de sua riqueza, não conseguia se desfazer daqueles seus modos e daquelas suas roupas de menino amarelo.
                Permanecera ele por muito tempo como o playboyzinho da nossa rua até o dia em que, tendo saído todo engomado de sua casa em nossa direção, o avistamos com uma bola a tiracolo, e foi exatamente neste momento que cogitamos a possibilidade de aceitá-lo como o goleiro reserva do nosso time. A bola nos era uma raridade, porque os nossos pais, em sua maioria desempregados, sofriam com uma crise financeira que assolava o País, e não tinham condições nem mesmo de nos comprar uma chuveirinho, veja você.
O menino, equipado com luvas, caneleira, tornozeleira e capacete, chegou mais perto, os óculos bem polidos incapazes de lhe esconder o brilho nos olhos, e, antes mesmo que começássemos a lhe pedir que nos passasse logo la pelota, pôs ele no ar uma das mãos, num gesto inconfundível de repreensão, e nos pediu que aguardássemos, para ouvir com atenção o que tinha a nos dizer.
                Juninho, como mais tarde, depois de rolado o baba, nós saberíamos ser o seu apelido, alcunha que lhe fora empregada no âmbito familiar por ser ele filho homônimo de um espanhol riquíssimo que aportou, assim como outros espanhóis, cheio de euros aqui na Bahia, tinha algo que ele julgava ser muito importante a nos dizer. Para acentuar a nossa apreensão, ele sacou um papel do bolso, papel este que tinha uma palavra em negrito encimando um pequeno texto, indo aqui para vocês após os dois pontos já em versão traduzida: “manual de instruções”.
Não fossemos tão jovens e tão vorazes, a situação já nos pareceria cômica, mas o fato mesmo foi que, como os nossos pés sentiam muita fome, esperamos silenciosamente que Juninho nos lesse um pequeno texto sobre como usar uma bola de futebol, como se europeu algum dia tivesse sabido como fazê-lo. Ouvimos sem tirar os olhos da bola e, após ter o Juninho findado a leitura, com boa dicção e excelente fluência naquele outro idioma - é bom frisar a boa educação do rapaz -, alguém entre nós lhe deu uma tapa fortíssima, pondo abaixo a sua mão, a sua bola, a sua moral e o que certamente recomendava aquelas teorias espanholas, tudo junto, e saímos a correr famintos atrás da redonda, pondo fim a um jejum de quase umas três semanas.
Juninho facilmente conseguiu se tornar nosso amigo, mesmo porque não era ele um moço protestante, mas, do contrário, muitíssimo obediente, sobretudo quando o iniciamos num novo esporte. Uma espécie de jogo dentro do jogo. Uma brincadeira que consistia em ir buscar alegremente a redonda, quando ela, após um disparate nosso em direção ao golzinho, saía do campo por nós delimitado imaginariamente e se perdia por debaixo de um carro ou de um caminhão, por exemplo. O Juninho jogava esse esporte muito frequentemente e somente nele não se tornou perito ou profissional porque inventaram por aí de empregar aos seus praticantes congêneres a denominação esdrúxula de gandula.
Hoje, somente pra concluir a história dentro da história, Juninho é um empresário riquíssimo e nós continuamos perdendo pedaços dos nossos pés nas pedras, nos cacos de vidros ou nas gostosas pisadas em pinaunas. Reza ainda a lenda que, de vez em quando, um carro importado pára – o meu editor de textos não queria me deixar pôr este acento, como se eu fosse respeitador de acordo ortográfico algum – na frente da rua e alguém, de quem não se enxerga o rosto por ser o veículo dele um automóvel muito alto e por ter vidro fumê, abastece a nossa meninada quinzenalmente com uma bola e segue viagem sem dizer palavra e sem buzinar. Eu acho que é Juninho, digo logo: não gosto de fazer suspense.
Mas quero mesmo é desvendar esse amor pela bola. Aludindo aqui, entretanto e acima de tudo, ao que me ocorre agora ser este amor um amor contestável: tem bola que, por ser pirracenta, não merece ser amada. Quem nunca chorou por um pênalti perdido, afinal? Quem não rememora, durante madrugadas inteiras de insônia, aquela bola inescrupulosamente tocada na trave ou numa lasca de unha de um goleiro que, após um insólito pulo de gato, a desvia de seu percurso natural?
Conheço gente que, inclusive, já fingiu dores no corpo e tomou duas injeções na bunda – uma em cada banda – pra pegar um atestado médico e poder faltar ao trabalho pra ir prum jogo. Nesse dia, soube que o jogo foi adiado por conta de fortes chuvas. E não foi essa mesma pessoa quem também já foi e voltou andando para o e do estádio por somente dispor na carteira do dinheiro do ingresso e nada mais? A bola, ingrata, nunca lhe pagou pelo sacrifício. Esse de quem estou falando é outro amigo meu, que me pediu pra não revelar o seu nome pra não ficar desmoralizado, porque tem uma gatinha nova no pedaço.
                A miserável seguirá sendo amada sem que eu consiga grandes explicações. Seguirá sendo a responsável por formar novas e grandes amizades, por quebrar vidraças e telhados dos outros, por nos fazer odiar eternamente a caricata vizinha com a sua faca... Um parêntese aqui. Aqui. Isso. Aqui mesmo. Por que diabos as vizinhas furam as nossas bolas? Está declarada aqui uma guerra contra as vizinhas. Vamos mostrar que sabemos o que fazer com a bola e que, por sabermos, ela, a bola, não mais adentrará o território alheio. É só praticar o bom futebol.

RF

Comentários

Anônimo disse…
RSRSRS... a bola é realmente um caso a parte na vida de um brasileiro, um caso a ser muito estudado. Ri muito com o texto; foi salutar. Tomar injeção pra ver futebol...hum, aja sacrifício(rs)!

Grande texto,

MASARACHAMADOGO

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