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Sobre como ajudarei um exilado a sobreviver

Tive uma dúvida ortográfica no décimo terceiro parágrafo deste texto que, confesso, quase me levou a desistir da escrita. E o blog quase, por muito pouco, quase que ficaria sem um texto no sábado de carnaval. Aquilo já estava mexendo com o meu orgulho. Não fosse o meu bom e empoeirado dicionário, não estariam aqui as minhas palavras. O texto a ser lido seria o meu último. Aquele sobre os amores que dei e que recebi para e de Caroline, que, ao que me parece, só eu fui releitor e só uma solidária Mariana foi leitora. Que coisa. Mas estou gostando deste espaço, apesar da audiência inaudita, que não temo, é bom que seja dito.

Um salão cheio de perfumes femininos. Uma mistura. Fragrâncias femininas. Até mesmo o suor feminino é alentador, concluí agora que sim. E pode-se dizer que, pelos ares daquele salão, talvez também navegasse por entre todas as nossas narinas, imiscuído com outros cheiros, um pouco de frescor sudoríparo feminino. Eram muitas as mulheres e muitas as meninas, afinal. Cabelos encaracolados de sobra. Excesso de benevolência e de beleza nativa. Mulher baiana. De todas as cores. O relógio marcava cinco da tarde.

Antes do salão, que não era de beleza o salão, uma ligação pela manhã. Atendi meio desentendido, confundido pela ficção do último sonho, mas consegui ouvir as palavras. Do outro lado da linha uma voz estranha. Estranha ao telefone, sim. Mas eu viria a saber, depois de do sono ter despertado, pelo número em meu aparelho registrado, que a pessoa com quem eu falara era um veado. Não. Que maldade. Falara eu com o meu melhor amigo Rafael França. Meu bom e velho amigo. Dizia que queria me falar. Queria uma conversa. “Regada a bons copos de cerveja, França? Só uma? Por que só uma, França?”, eu lhe perguntara. Ele me dissera que já houvera num texto explicado por que só uma e desligara, resmungando antes um lugar e um horário.

Voltemos nós, então, ao salão. Estávamos lá eu e o meu amigo, que não se atrasou. Dois desperdiçadores de tempo. Homens deveriam ser proibidos de fazer amizades entre si. Homem somente deveria ser amigo de mulher. E quanta mulher havia naquele salão, meu Deus. Quanto perfume indo e vindo. Ficamos eu e o meu amigo desandando a falar besteiras, que ele deu início, quando resolveu me contar, com o olhar descaradamente perdido pelo florido salão, que estava descontente com as atitudes do nove do seu time do coração, dizendo, esperando debalde que eu com ele concordasse ou lhe refutasse as idéias, que seria ele, o tal centroavante, um desbocado, um perna de pau, um jogador que não merecia a camisa que veste, um covarde, um pilantra, que não sei o quê, não sei o quê e blá-blá-blá.

- Sim, França. Você me chamou aqui para isso? – impaciente, eu perguntei. É lógico que tinha que perguntar. – Veja só quanta mulher à nossa volta, meu amigo. Não desperdice o meu tempo.

- Não, parceiro. Liguei pra você porque preciso de ajuda.

- O que foi, meu camarada? Pode falar.

- Estou pensando em parar de escrever. Estou pensando em dar um tempo. Tenho muita coisa para ler. Muita coisa para estudar.

- Que conversa mais fiada, França. Você arrumará tempo, rapaz. Você precisa exercitar a escrita. Deixe de coisa. Pare com isso. Quer parar por quê? Fale logo a verdade.

- Você vai assumir o INTITULÁVEL, se eu lhe contar?

- Que história é essa, rapaz? O pessoal nem me conhece. Meu texto está lá até hoje. Só um comentário. O pessoal não gostou de mim.

- Assuma o blog, rapaz. A aceitação virá com o tempo. E você é o meu mestre. Aprendo muito com você. Eu aposto, aposto com você que, daqui a mais dois ou mais três textos, você terá duplicado ou triplicado a nossa audiência.

- E eu confesso que gostei da experiência, amigo. Mas, me fale: o que é que tá pegando?

- Quero escrever um romance.

Eu gargalhei. Ri muito e ri alto. Silvinha teria me dito, se com ela eu viesse a conversar sobre esse meu lero com o França, que eu sou um insensível. Não sou. Sou realista, Silvinha. Silvinha é uma ex-namorada minha, e ela me dizia isso com grande freqüência. Eu ri do França, na cara do próprio França, porque ele, um incauto em literatura, ainda não deve pensar nisso. Não por agora. O meu riso era apenas uma minha tentativa de fincar os seus pés no chão. Pus uma mão num ombro seu e lhe disse, cessada a gargalhada, como bom amigo que sou, que pensar em se dedicar a escrever um romance por agora, no alto dos seus inócuos 23 anos de idade, seria como romancear a própria vida.

- O que lhe inspirou, seu maluco? Você tem ao menos alguma grande idéia? – eu perguntei. Tinha que perguntar: nunca se sabe. De repente, ele teria mesmo algo interessante para escrever.

- As idéias virão com o tempo. Só preciso inventar um nome para o personagem principal.

- Só um nome? Você ficou louco? Continue lendo, França. Continue leitor de tudo. Compre o máximo de livros que puder. Você estava no caminho certo. Mas tenha calma. E, outra coisa, amigo, você tem que experimentar a vida. Quando você completar 40 anos, você me liga novamente, dessa vez com permissão para me acordar, e a gente voltará a conversar.

- Foi João Ubaldo quem me deu esta receita – quando ele, com uma pausa, pôs o ponto final nesta frase, eu voltei a gargalhar.

- O que disse JU, França?

- Disse que escrever um romance é fácil. Mas ele disse parafraseando um escritor americano, o verdadeiro autor do pensamento, um escritor de quem nem mesmo ele se recordava o nome, e disse que, feito isso, escolhido o nome, seria somente então necessário sair correndo atrás deste personagem, anotando tudo o que ele fizer, que aí o livro estará pronto.

Mais gargalhada e mais idéias desconexas do meu amigo. Perguntei-lhe sobre o enredo. Que enredo? Ele não tinha um. Ensaiou me contar algo que ele pensara escrever. Alguma coisa sobre mundos paralelos. Uma narrativa que giraria em torno de duas pessoas que dividiriam uma única alma. Uma idéia meio desvairada, mas que, admito, renderia, sim, algum tipo de literatura que recorre à metafísica para prender as vistas de alguns parcos leitores. Essa sua loucura até que renderia uma história. Renderia, se eu não o tivesse logo dissuadido. Ele, então, com a retórica esgotada, as idéias por mim rechaçadas certamente apagadas no pensamento, baixou o rosto, mas depois me encarou vivamente, os olhos verdes brilhando, e me perguntou:

- E se você me ajudar?

- Puta que pariu, França. Você não desiste. Já lhe disse que você ainda não tem condições. Você somente escreveria literatura de cordel e olhe lá. E, você sabe, eu ando muito ocupado para ainda ter de alimentar utopias alheias. Faça o seguinte: me dê o comando do blog. Eu fico com o blog. Eu fico com o blog e você investe na sua loucura. Não é isso o que você tanto quer? Não é largar o blog que você tanto quer, França? Pois faça isso. Eu assumirei. Sou seu amigo. Faça isso.

- Obrigado, irmão.

Disse-me isso e saiu. Agradeceu-me com um “obrigado” e saiu. Não dividiu a conta e foi embora. Miserável. Mas, bem, aqui estou. Foi por esse acontecimento, foi por ter contribuído para com o exílio do meu grande amigo que ganhei este espaço. E aqui estou. Eu teria continuado a xingar o França em escala crescente se, um momentinho antes de eu proferir um primeiro palavrão, o meu pequenino filho não tivesse adentrado o quarto e me visto escrevendo, frente ao computador. Perguntou-me o que eu estava fazendo. E eu, exatamente no momento em que a escrita deste parágrafo estava em curso, lhe disse que estava ajudando um amigo.

- Que amigo, papai?

- Um grande amigo dos tempos de escola, filho. Vá brincar. Vá brincar porque papai precisa trabalhar.

- Você tá trabalhando no lugar dele, papai? E o salário dele? Também virá pra você?

As crianças são mesmo geniais. Têm inteligência de sobra. Precisam ser mais bem exploradas. Eu fiquei rindo com o meu filho e agradecendo secretamente a Deus por tê-lo comigo. Esqueci um pouco este texto. Deixei a escrita um pouco de lado. Entramos em sites de jogos eletrônicos. O diverti por um momento. Eu lhe ensinarei sobre tudo o que puder ensinar. Quero vê-lo vencedor. Quero vê-lo educado e gentil. Quero moldá-lo em grande homem. Dei-lhe uma tapinha na bunda, ele saiu do quarto chutando uma bola e foi brincar. Eu voltei a escrever.

Os meus pensamentos não abandonam o meu velho amigo e o meu velho amigo não me abandona os pensamentos. Dediquei grande parte desta semana a pensar em como as pessoas obstinadas tendem facilmente a enlouquecer. Rafael França. É esse o nome do meu contumaz amigo. Fiquei imaginando a sua agora distante rotina. Ele desligou os telefones. Nunca mais nos falamos. Deve ter passado a semana dormindo entre livros e delírios. Deve ter sofrido de todo tipo de alucinação que alguém pode sofrer. E o pior de tudo isso é que eu sou o culpado: não fui convincente. Por que não lhe dei uma boa de uma tapa pela face? Por que não o desmoralizei publicamente? Escrever um romance. Que idéia mais tola. Ingênuo. Ambicioso ingênuo filho de uma mãe.

Mas e se, de repente, não sei, não estou dizendo que acredito nisso, mas e se as idéias estiverem brotando? E se ele já tiver, além do tal nome do protagonista, um tal de um bom enredo, também? Fiquei com essas perguntas me cutucando, até mesmo durante os expedientes, que, é bom frisar, foram dos mais agitados possíveis. Aquela redação estava um inferno esta semana. Véspera de carnaval. Jornal de cidade festeira vira um enxame. Muita ladainha sobre foliões, trios elétricos e artistas em geral. Muita baboseira. Eu sonhava com outro acontecimento como Watergate. Eu sonhava em reencarnar um Woodward ou um Bernstein, cultuados heróis do jornalismo investigativo. Mas Salvador não tem grandes vilões; só prostituição, alta violência, altíssimo índice de consumo de drogas e muita poluição sonora. E o carnaval é uma droga. Um câncer.

Quais seriam as suas influências, França? Truman Capote? Gay Talese? Ou estaria você definitivamente decidido a ser simplesmente um romancista? Manuel Bandeira, Machado de Assis e Castro Alves? Livros de João Ubaldo Ribeiro sobre a mesa. Contos e crônicas esparsos. Biografias. Deve ser doloroso o processo de escrita. Deve ser difícil parir um personagem. Definir a sua personalidade, então, nem pensar. Construir e exibir modos de pensar intricados. Vidas que não a sua própria. Quanta responsabilidade. E a luta contra a auto-suficiência de cada um deles? Quem manda em quem? Não, meu amigo, isso não é para você.

E, depois, França, um escritor não precisa de reclusão. Você não precisa deixar de escrever no blog só porque está envolvido noutro projeto, meu amigo. Eu posso lhe ajudar: posso escrever por você. Eu escrevo as crônicas e os contos e você os assina. Poderemos inventar um pseudônimo, então. Saia deste exílio. Retorne a esta página, porque esta página é sua. Sei que está lendo. Eu sei que está aí. Vamos. Dê-me um pseudônimo. Que grande idéia a minha, não? Não era disso que você tanto precisava? Não precisava de um nome? Vamos, amigo. Dê-me um novo nome. Dê-me um novo nome e deixe que eu mesmo corra atrás de mim. Ou podemos fazer o contrário: você escreve e eu assino. Exatamente como pretende fazer em seu projeto. Poderá igualmente correr atrás de mim, como lhe ensinou JU, e contar a minha história. Serei o seu personagem. Concorda que deveremos fazer desta maneira? Tudo bem. Vou esperar uma resposta sua. Mas, se lhe for mesmo difícil escolher um nome, e se você assentir com a idéia, já poderá você, à partir de agora, me chamar de um outro nome. Poderá me chamar de Leafar.

Comentários

Anônimo disse…
Que legal, eu apareci em um texto. hehehe. Seus textos são legais, mas é aquela coisa de sempre, nem todo mundo gosta de ler textos grandes. Eu gosto.

:) Mariana :)
Anônimo disse…
Eu li os outros textos assim como esse, mas dá preguiça de comentar. Gosto mais de crônicas, que de contos. Mas sinceramente não sei dizer se seus textos são crônicas ou contos.

Carolina Araújo
Gostei do texto. Só que no seu lugar eu o incentivaria.
Anônimo disse…
Também gostei do texto.

Que Jesus continue te iluminando!

Maria Lúcia

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