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O título

Osvaldo chegou em casa radiante. São poucos os meninos que chegam tão felizes da escola. O pai foi logo perguntando, quando o viu entrar em casa esbaforido:

- Você viu passarinho verde, meu filho?

- Não painho, quero muito botar no papel uma ideia genial que tive depois da aula de Português.

O menino, que tinha onze anos de idade, cursava o sétimo ano do ensino fundamental. O pai sabia que o filho era estudioso e gostava de escrever. Estava feliz com o desenvolvimento escolar dele e, por isso, já tinha presenteado o garoto com um notebook. Mas, advertiu-o naquele instante, para tomar banho e almoçar, antes de ir para frente do computador. Osvaldo obedeceu. Mas comeu numa velocidade anormal. Em dez minutos ele já estava navegando, pesquisando, consultando e escrevendo. O pai chegou a olhar de longe, observou matreiramente o filho fuçando o google, alternando com outras páginas. Havia um brilho no rosto dele. Ele viu então uma página em branco surgir e o seu filho começou escrever nela uma história. Ele então resolveu deixar o filho sozinho em sua tarefa.

Quando Osvaldo terminou seu texto, saiu eufórico a procura do pai. Mas ele tinha saído. Então correu para a mãe, que estava na cozinha terminando o jantar. Ela relutou para ver a página que o menino segurava em sua mão. Mas de tanto ele insistir, ela parou um pouco o que fazia e sentou-se para ler. É um conto que eu escrevi, mainha, eu inventei - falava afobadamente o pequeno. As vistas cansadas de Dona Maria mergulharam naquele texto, sem muito interesse, mas com o desejo de agradar o filho.

Suzana era uma empregada doméstica. O que mais gostava de fazer era ir à igreja. Arrumava-se toda, punha o melhor vestido, o perfume mais gostoso, o creme mais suave, fazia o melhor penteado e saia toda sorridente – assim a aia ia a missa! Ao sair de casa, o céu estava azul, mas um azul vibrante, era o que Seu Paulo da padaria chamava de “o céu sueco”. Passou pela pracinha do bairro e viu, como de costume, alguns pedintes. Mais ao fundo, um sujeito sujo cantarolava e poetizava. Ela só conseguiu ouvir: a diva em Argel alegra-me a vida. Que estranho – ela pensou, mas lembrou que estava atrasada e não era tempo de pensar. Mas não teve jeito, o louco começou a segui-la. E dizia: O galo ama o lago, o lobo ama o lobo, mas minha diva não me ama! Suzana acelerou os passos. Avistou um casal atravessando a rua. Era uma mulher bem gorda e um sujeito todo engomado, parecendo um executivo. O maluco que a seguia deu um berro estridente, a mulher tomou um susto e tropeçou numa poça de água. A droga da gorda acabou derrubando a mala do homem que a acompanhava. A mala nada na lama e Suzana ficou com seu belo vestido todo respingado do lodo que misturava barro e água. Triste e revoltada, ela sentou-se no jardim de frente ao belo templo. Não teria coragem de entrar mais lá, estava se sentindo suja. Lá no alto, os sinos começaram a tocar. A torre da derrota – ela pensou. Marluce, uma amiga sua e colega de profissão, a viu sentada e já chegou toda serelepe oferecendo produtos em revistas. Olha amiga, essa Avon é nova – ofereceu a vendedora. Suzana relutou, mas acabou comprando e sorrindo com as besteiras que a amiga falava. Rir, o breve verbo rir. Lembrou-se da gorda que destruiu sua manhã. A cara rajada da jararaca depois do pito que levou do companheiro. Resolveu voltar para casa e no caminho avistou o sujeito desorientado que também foi parte naquela tragédia matinal. Ele ainda proferia suas loucuras: O romano acata amores a damas amadas e Roma ataca o namoro! O cara era mesmo doido – ela pensou. E percorreu o restante do caminho procurando uma palavra que resumisse tudo aquilo.

Dona Maria terminou a leitura muito confusa. Osvaldo, ao perceber que a mãe acabara a leitura, foi logo perguntando:

- Qual é o título?

- Quê, Vadinho?

- Qual o título para essa história, mainha?

- E eu sei lá!

- Poxa, a senhora parece que nunca estudou.

Osvaldo esperou o pai chegar. Deu a ele o texto e esperou para fazer a mesma pergunta que fizera a mãe. Ele também não sabia, mas fingiu saber.

- Confusão?

- Não, painho!

- Devoção, então?

- Poxa, ninguém me entende.

- Calma, eu vou descobrir.

O homem, com sua experiência, percebeu que ali residia uma charada. Sentiu que naquele texto existia uma escrita constrangida. Percebeu as frases que estavam em negrito no texto. Sabia que ali estava a chave, mas não encontrava conexão naquelas frases estranhas. Onde esse menino foi inventar isso? Fitou bem o filho e lembrou de sua chegada eufórica pela manhã. O filho havia falado numa ideia genial, algo sobre Português. A mãe de Osvaldo o chamou para jantar. O pai fingiu mais uma vez saber a resposta e disse ao filho que falaria o título daquele texto após a janta. Enquanto Vadinho ia ao banheiro lavar as mãos para comer, seu pai enfiou-se no quarto e foi pesquisar no “pai dos burros” da modernidade: o google. Colocou as frases e teve uma grande surpresa. Lembrou-se de um conto de Luís Fernando Veríssimo, em que o pai finge saber o significado de uma palavra para o filho, mas acaba pescando num dicionário. Ele estava fazendo a mesma coisa. Foi para a cozinha, a mesa já estava arrumada. O jantar foi servido. Osvaldo mais uma vez deglutiu com muita rapidez, apesar das repreensões de Dona Maria.

- E aí, painho?

- Aí o quê, Vadinho? – perguntou Dona Maria, antecipando o marido.

- Ele quer saber o título da história que escreveu.

- Esse menino inventa é arte, ele me mostrou, mas não entendi nada.

- Mas painho entendeu. Não é?

- Sim, eu sei a resposta e sabe por quê?

- Porque eu estudei Português! – arrematou o pai.

Abriu-se um enorme sorriso na face de Osvaldo. Ele percebera que o pai sabia a resposta. Mas ele demorara a descobrir o segredo. Vadinho já estava se sentindo orgulhoso. De ser inteligente e de ter um pai também inteligente. Dona Maria, cansada daqueles sorrisos para lá e para cá, retrucou:

- Afinal de contas, que diabos de título é esse?

- Ah, mainha, pergunta a painho.

- Você sabe que eu já sei, filho.

- Vocês podem me dizer?

Os dois, naquele instante, falaram em uníssono, como filho e pai que se amam, se entendem e se completam: Palíndromo.

Comentários

Quéren disse…
Amei o texto. E como eu sou curiosa, antes de terminar e sem perceber também já sabia o título.
Prossiga nas crônicas, estão muito boas.
Anônimo disse…
Achei muito legal a historinha. Eu não descobri o título logo não. Lembrava de palíndromo, mas só conhecia: Socorram-me, subi no onibus em Marrocos.

Essa criança aí existe no mundo real??? Tá difícil viu?

Jesus abençoe você!!!
Maria Lúcia
Anônimo disse…
Hehehe. BEM LEGAL. Vadinho é o nome de meu avô, deu uma saudade dele quando li a história. É um conto infanto-juvenil, mas que ensina muito aao público adulto-senil. Hehehe. Gostei.

:)Mariana:)
Anônimo disse…
Não sabia que você escrevia pra crianças, meu brother. Tá massa.

ABRAÇO,

Magnum
Anônimo disse…
Não acho que seja para crianças apenas esse texto. Até porque, conforme disse uma moça no comentárioa acima, é difícil crer numa criança assim. O texto ganha contornos ficcionais e acho que ele é, assim como o palíndromo,uma escrita muito forçada. Não deixou de ser inteligente e interessante, mas achei que faltou a leveza de um conto infantil. Mas quem sou para criticar,ahahahah. Vai desculpando aí, a iniciativa é válida. Gosto de meter o bedelho no trablho dos outros.

Carolina Araújo
Anônimo disse…
O título nem sempre é o mais importante. Infantil ou não, ficional ou não, forçado ou não, o texto literário é inevitavelmente tocante. Mas o caso em questão não se resume a uma simples charada para um título, ou uma tentativa de ensinar uma curiosidade da língua, é muito mais que isso. É o reduto familiar e escolar sendo discutido e exposto. A essência está aí, basta abrir a cabeça para aprender.

MASARACHAMADOGO
Gabriel França disse…
rsrsrs... Bem legal a história. Nem desconfiei do que era. Nunca ouvi falar em Palíndromo. Ao final do texto, ainda sem noção, tive que recorrer ao GOOGLE pra ver o que era. rsrs...
Ficou massaa!

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