Pular para o conteúdo principal

Das vicissitudes de um confesso preguiçoso


Descobri algo que tem me proporcionado enorme prazer, nos dias meus de folgas semanais. Tenho me dedicado a não fazer nada. Mas é não fazer nada, assim, eu digo, veja se me entende, é não fazer nada o dia todo, que é pra sobrar alguma disposição pro dia seguinte, que geralmente é uma quarta-feira insossa. Mas, sendo elas insossas ou não, voltar ao trabalho às quartas-feiras, rapaz, é algo que não dá pra explicar nem mesmo hiperbolicamente. Devo eu me sentir mais inteiro, mais prestativo. Parece sempre que eu volto ao serviço com setecentas resenhas de livros na memória, com a alma renovada e com os cabelos penteados, porque, meu amigo, o que eu vendo às quartas-feiras não é brincadeira, não. 
            É o seguinte. Nas terças-feiras minhas de folga, depois de passar o dia todo dormindo e misturando o som da televisão e do ventilador com os sons dos enredos dos meus sonhos – já falei sobre esse deleite aqui, em outro texto -, eu levanto umas quatro e meia, tomo um banho, e saio pra ver o pôr do sol, mas só saio com meu olhar de cronista, que, é bom que seja dito, ninguém me ensinou, mas que eu uso porque eu acho que é daquele jeito, do jeito que eu olho para as pessoas e para as coisas, que o cronista deve emprestar o seu olhar à vida. Um olhar preguiçoso. Sabe como é? É assim ó. Pois é. É esse o olhar, imagine aí você, é esse o olhar que eu usarei, quando cronista de verdade for.
            Aí é o mesmo percurso. De casa pra locadora, onde gasto a paciência e o tempo das menininhas bonitinhas que trabalham lá, porque não tem um filme que preste naquela porra, e aí, não sei ainda se por secreto desejo de vingança e por empatia própria, eu exijo delas o que me exigem diariamente: muitas consultas no computador. Demoro muito pra escolher um filme, e o filme que eu escolho geralmente é tão ruim que eu só os termino de assistir na madrugada do outro dia, porque eu cochilo e os divido em 36 ou 72 vezes, dando pause e voltando as cenas, que é pra não perder “legenda”. Depois, vou da locadora pra beira-mar, pra ver o pôr do sol.
O mesmo garçom do mesmo bar, que a cada terça me parece mais velho e de quem já pensei extrair o exemplo real de vida para criar uma personagem para outro texto meu, geralmente traz a minha cerveja às cinco e quinze, enquanto eu fico só olhando pro sol, aquele bolão amarelo - revestindo-se já àquela altura do tempo, na verdade, de um magistral quase-laranja -, que, já sem tanta força, mas ainda um sol capaz de me emprestar algumas cores, eu uso pra misturar às cores minhas. Aí a cena está feita, meu amigo: eu saco do bolso um pedaço de papel e uma caneta, dou umas bicadas no copo de cerveja, lanço o meu olhar, aquele que eu fiz e que você imaginou no parágrafo lá de cima, e passo rabiscando os restos dos finais de tardes todinhos. O garçom ainda vem, mesmo sem botar muita fé nas minhas idéias, e tenta dar uma sacada, de longe, como quem não quer nada, mas acho que ele sempre consegue ler algumas frases soltas, porque eu já o vi rindo escondido, aquele sacana.
            Só que, terça-feira última, sem mentira nenhuma, eu fui desafiado por um cabra. O cabra era muito mais velho do que eu, e tinha mais do que olhar de cronista: ele andava, falava, bebia a cerveja e gesticulava como cronista. O miserável pedia a cerveja fazendo piada, e o garçom ia mais do que rindo lá pra dentro buscar a gelada dele. Quando o garçom voltava, era outra piada, e ele ainda sacava uns papéis todos preenchidos e dava de presente ao garçom, que chamava os seus colegas pra ler. Logo quando cheguei, fiquei de pé só olhando, com uma inveja boa, porque eu admirei logo de cara a aparente sabedoria daquele coroa, e parei com os braços cruzados, antes de me sentar, indisfarçadamente interessado em conhecer o conteúdo daqueles papéis. De modo que, só pra descobrir o estilo literário daquele velho boêmio que se adivinhava genial, depois de quinze minutos e de quase terminada a cerveja, eu chamei o garçom e pedi mais uma, contrariando o ritual que caracterizara as abençoadas terças-feiras precedentes – só tomo uma porque a cerveja é uma bebida amarga e faz mal e porque eu tenho sempre que comprar o pão - e disse que, desta vez, queria mais uma cerveja e que, além do valor das cervejas e dos seus dez por cento, pagaria também por um papel daqueles.   
            O garçom – benevolente, devo admitir, mas todo lerdo do jeito que só ele é, porque o meu personagem inspirado nele não será como ele, quando outro conto de bar eu vier a escrever – falou em voz alta, aquela desgraça, que não precisava pagar porque “o Sr. Eustáquio distribui os textos dele gratuitamente”. Ainda falou assim, separando as sílabas, como quem fazia questão de dar ênfase à palavra: “gra-tui-ta-men-te”. Aquele garçom, não tenho nada contra, registre-se, mas, imagine a cena e conclua comigo: aquele garçom é veado, namoral. Aí o coroa ouviu e olhou pra mim, quase sem fazer esforço, com um olhar fatigado, antes de perguntar: “você também quer ler uma crônica minha, filho?” De um só gole, tomei o resto da cerveja quente e disse, sem arrotar, feito homem que não teme falar com estranhos, que sim, se ele não se importasse. “Não se acanhe, filho. Chegue mais. Os textos que escrevi pela manhã acabaram, mas escreveremos um aqui, agora”, ele falou e foi logo sacando a sua caneta. Aí eu cheguei mais e já cheguei falando, com o dedo indicador em riste, talvez embalado pelo inebriamento etílico, que eu duvidava que ele escrevesse um texto ali, comigo espiando, lhe fazendo perguntas e contestando os seus métodos de colocação de vírgulas e sua pontuação.
            “Sente-se aí, rapaz, e deixe de história, porque você tá falando com um cronista de verdade”, foi assim mermo que ele falou, meio sério. E completou dizendo que “foram 17 anos como editor do Tribuna”. Depois do que ele revelou, eu perguntei, após o espanto causado pela surpresa de seu anúncio, com meu sotaque bem baiano: “porra! Foi mermo?”. Ele disse que sim e que ainda fora da época de João Ubaldo Ribeiro. Aí pronto. “João Ubaldo Ribeiro?”, eu repeti o nome, entusiasmado, e pus na voz a entonação que o mundo todo reconhece como sendo a entonação de uma pergunta. “Foi mermo, vei?”, emendei. O Sr. Eustáquio, então, antes de ratificar a sua convivência com o setentão mais sagaz de nossa literatura moderna, me exigiu maior respeito e me disse que eu não usasse gírias e que lhe chamasse pelo nome, e de modo que eu também fizesse precedidamente uso do pronome “senhor”, porque ele evidentemente era – e ainda é, ou ainda deve ser, não sei. Ele existe, mesmo? - um senhor de idade.
            Topei e lhe pedi desculpas. Passei a lhe chamar de Sr. Eustáquio, então, pra satisfazer o seu pedido. Justo pedido, aliás. Só que eu não queria que ele me provasse que era bom de escrita, não. Não era mais necessário provar nada: havia mais do que eloqüência no discurso daquele velho. Ele tinha aura de escritor - a sabedoria parecia sobrar em seu espírito, mesmo que nas frases não ditas, mas imaginadas em meus breves pensamentos. Eu acreditei que ele era – ou ainda é? E ele lá existe? – uma pessoa muito inteligente e lhe propus, pra não perder tempo - porque a padaria geralmente demora pra fechar, mas uma hora ela fecha. Uma hora a padaria fecha, e isso sempre é dito despretensiosamente como um dos provérbios de sabedoria dos mais velhos, entre os intervalos das partidas de dominó. Quem quiser que não preste atenção no que dizem os mais velhos e se lasque nessa vida - que não escrevêssemos, mas que, no entanto, ele me ensinasse os caminhos para me tornar um cronista. “Quer ser cronista, filho? Você já escreve? Tem algo publicado?”, ele me tri-perguntou. Eu disse que estudo jornalismo, que escrevo, que colaboro com um blog e acrescentei que – queira Deus que os meus professores e futuros editores não me ouçam, mesmo porque, se ouvirem, eu meto a culpa na cerveja – não gosto de ler jornais diários e nem de produzir notícias.
            O coroa, o Sr. Eustáquio, quero dizer, tomou um susto. Depois me deu amistosamente uma tapa, que eu não sei de onde ele tirou tanta força, aquele velho, pra bater tão fortemente em meu ombro, e me disse: “você será um cronista, filho”. Perguntei-lhe de prontidão por que ele chegara àquela conclusão tão rapidamente e ele, como resposta, filosofou. E me confidenciou que era igualmente assim que ele se sentia em sua época de mais jovem, que também não gostava ele de fatos nus e crus e que odiava ele, quando jovem repórter, ter que abusar da objetividade em sua escrita, mas acrescentou que, mesmo eu tendo em meu destino futuro a felicidade de me tornar um cronista e de poder contar para o público deliciadamente as minhas mentiras, eu ainda teria muito que me lascar cobrindo matérias pra editoria de cidades, produzindo lides e entrevistando gente desinteressante. “Porrá”, foi só o que eu disse em resposta, meio desanimado, com esse A acentuado, que é pra dar alguma outra significação à palavra, e tomei mais um gole de cerveja.
            A conversa nossa era como que uma entrevista conduzida por um estagiário esbaforido com um medalhão da antiga imprensa. Ele me pedia que variasse os assuntos. Desenvolto, me falou de futebol, de política, de ciência e de tecnologia. Falou-me das pequenas outras artes, como a pintura, e falou com graça sobre a capacidade que a música tem de facilitar o acasalamento humano. Começou, enfim, e não quisemos mais variar, a falar de mulher. O cara falava poética e filosoficamente sobre mulher e ficava ele com cara de abestalhado, só tirando uma foto pra você ver, com cara de velho lerdo, fitando o nada, mesmo quando inescrupulosamente se referia a elas, às mulheres das suas lembranças, utilizando-se de palavras hoje rasteiras – nas bocas dos mais jovens – como “trepadas” e “furunfadas”, utilizando-as, no entanto, de modo que estas pronunciações fossem sempre por mim comicamente inesperadas e deixassem transparecer que a sua alma tenha lhe seguido pelo tempo, não tendo ela ficado presa junto às suas lembranças, mas também tendo se mesclado e sofrido influência dos temperos dos dias atuais. 
            O Sr. Eustáquio filosofou, mas filosofou muito. Muito mermo. Bote muito nisso. Ele me falou, entre o muito que falou, e isso, em especial, eu não poderei jamais esquecer, que a beleza da vida está nas mentiras que a gente conta em nossos contos e em nossas crônicas, porque não há fonte maior para o nascimento de boas palavras do que a nossa própria imaginação - ó imaginação, o reduto nosso que é o nascedouro das boas mentiras, ó magnânima imaginação -, mas que não deveríamos deixar de reconhecer, entretanto - “entretanto” é uma palavra pela qual, por ter se tornado tão comum, ele sente ojeriza, e isso foi ele mesmo quem me disse, num parêntese de nossa conversa –, que o cotidiano retratado e aprendido nas matérias dos jornais diários será o elemento que substancialmente – palavra dele – me concederá maior amadurecimento na escrita, o que concederá legitimidade à minha crônica.
Por fim, com ironia e com desdém, ele me disse que parasse de usar tanta vírgula, porque as minhas vírgulas, segundo ele, são empregadas, não entendi bem, são empregadas, ele falou, dando ao seu discurso efeito de comparação, que elas, as minhas vírgulas, são empregadas como se fossem os nós excessivos que os atacantes dão nos zagueiros, quando aqueles deixam estes de bunda no chão, antes de meter a porra no gol. Antes de fuzilar a rede. “Os nós excessivos são a prolixidade do futebol e as vírgulas são como as firulas do texto literário. Respeite a honra do zagueiro, meu filho. Respeite a paciência do leitor”, ele filosofou. Foi essa a sua última filosofia, aliás, e foi a ela que, em vão, tentei responder no mesmo nível: “Porra, Sr. Eustáquio” - já meio consciente, eu tomei a liberdade de dizer - “desse jeito até eu, que não sou muito de contar mentiras nos meus contos, estou disposto a acreditar que tive essa conversa com você, com o senhor, digo, dada a pertinência das suas colocações. Duvido mesmo, velho safo, que exista um velho safo assim como o senhor na vida real”, eu falei, encorajado pelo barulho inconfundível do ventilador que já dava pra escutar, e que, em algum lugar do meu consciente, já me dava notícias da coexistência do mundo real. O Sr. Eustáquio apenas sorriu, em resposta, sem nem se opor à minha conclusão. Eu ainda lhe agradeci pelos conselhos, mas ele nada respondeu, porque já eram mesmo umas quatro e meia da tarde.
Umas quatro e meia da tarde, amigo, pra lhe poupar a memória ou o esforço de retornar ao segundo parágrafo, é mais ou menos o horário em que, não sei se por sincronia biológica, por obra metafísica ou por capricho literário meu, é o horário em que desperto dos cochilos santos meus de cada terça. E pra quem ainda acha que dormir em demasia é perda de tempo e que esse ato transcendental e estimulante pode mesmo fazer algum mal, eu refuto preguiçosamente, quase cochilando de novo, com embasadas afirmações contrárias e com a autoridade de um futuro cronista, que faz bem, amigo, dormir faz bem. Faz muito bem, e, às vezes, com um pouquinho só de mais dedicada preguiça, dá até pra gente ter alguns sonhos que nos permitem continuar a sonhar.

RF

Comentários

Anônimo disse…
Esse jeito vulgar é do cronista ou do personagem? Tome cuidado, pois nem sempre o ócio é criativo ou renovador, ele pode se apresentar assim, mas no fundo ser muito ruim para o seu crescimento.

"Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, mas só a que for boa para promover a edificação, para que dê graça aos que a ouvem."

Desculpa minhas exortações, mas as receba com amor, pois assim elas foram produzidas.

Sucesso nas empreitadas da vida e que Deus possa te conceder a graça de realmente ser mais que um blogueiro, ser um renomado cronista.

Maria Lúcia
Anônimo disse…
O comentário acima foi bastante incisivo, mas acho que o autor da crônica estava como autor-personagem. Assuntos filóficos e eternos como o ócio e a dualidade jornalismo-litertatura são sempre bons temas para discussão.

"O homem que consegue esquecer o seu trabalho quando este finda e não pensa mais nele até o dia seguinte, fá-lo-á provávelmente muito melhor do que um outro que se atormente a pensar nele em todo o tempo de descanso. "

"A preguiça faz cair em profundo sono, e a alma indolente padecerá fome."

Os pensamentos acima são, respectivamente, de Bertrand Russel e Salomão. São os extremos que precisam sempre ser evitados.

Quanto ao jornalismo-literário, em regra todo escritor é jornalista e todo jornalista é escritor. Mas acho que ser literato é algo acima de ser escritor e jornalista.

MASARACHAMADOGO
Gabriel França disse…
Uma mudança no estilo de escrever também faz muito bem ao crescimento do autor. Gostei muito do texto, foi bastante dinâmico. Só estranhei a história toda, porque sei que, o seu hobby preferido é não fazer nada. Rsrsrs... Ficou muito bom. Mais uma prova da sua qualidade como jovem escritor e, quem sabe, num futuro próximo, um renomado cronista.
Valeu, velho!
Anônimo disse…
Eu gostei do texto! O desejo seu é o mesmo meu. Já eu não curto muito o ócio não, sou um tanto quanto hiperativa. Pq demoram tanto a postar? Achei q não iam escrever mais!

Até mais preguiçoso! Hehehehe

:) Mariana :)
Quéren disse…
Com certeza um cronista de sucesso.
Já disse que gosto das suas crônicas?
Amei o texto. Li imaginando cada personagem, caracterizando tudo. Muito prazeroso.
Me senti lá, por que até um preguiçoso tem os seus casos e acasos.
BJ
Anônimo disse…
eh preguiça! Bisbilhotei o blog e pelo q vi, vcs são baianos? Isso? Mas não dizer q isso explica a preguiça.ahahhaaha. Gostei do texto, tb imaginei cada personagem, é uma crônica gostosa de ler, parece ser uma mistura de realidade e ficcção. Muito legal, me diverti a beça ahahhahah.

Carolina

Postagens mais visitadas deste blog

EDMÉIA WILLIAMS - UM EXEMPLO DE FORÇA E CORAGEM

Vivemos em um mundo altamente egoísta. São raras as ações de humanitarismo e solidariedade. Por isso mesmo, elas merecem grande destaque. São poucos os relatos de pessoas que abandonam o seu cotidiano e a sua comodidade para contribuírem para o bem-estar do próximo. A “personalidade da semana” do INTITULÁVEL é uma dessas exceções da sociedade hodierna. Edméia Willians nasceu em Santarém, interior do Pará. Entretanto, sua família migrou para Salvador, na Bahia, onde ela passou a maior parte de sua vida. Aqui ela cresceu, realizou seus estudos, se casou, constitui família e obteve os bacharelados em Pedagogia, Filosofia, Psicologia e Música. A sua vida era normal, como de muitos. Passou a morar no Rio de Janeiro, devido ao emprego de seu marido. Chegou até a morar no Iraque, ainda na época de Sadan, também por motivos profissionais relativos ao seu esposo. Tudo transcorria normalmente até que duas tragédias mudaram a história de sua vida. Em um período muito curto, Edméia perdeu o seu es

POR DENTRO DA CAIXA DE PANDORA

Mais uma operação da Polícia Federal. Seu nome: CAIXA DE PANDORA. Os resultados: corrupção, caixa dois, mensalão. Envolvidos: José Roberto Arruda (DEM) - governador do Distrito Federal , Paulo Octávio (DEM) - vice-governador, Durval Barbosa (o delator) - secretário de Relações Institucionais do Distrito Federal e mais uma corja enorme de deputados distritais corruptos. E o que podemos aprender com tudo isso? Vamos começar pelo excêntrico nome da operação policial. Pandora é uma personagem da mitologia grega, considerada a primeira mulher, filha primogênita de Zeus. A famosa Caixa de Pandora era usada por ela para guardar lembranças e a sua mente. A tragédia aconteceu quando ela guardou lá um colar que seu pai havia dado a ela. A caixa não podia guardar bens materiais e por isso o colar foi destruído. Pandora entra em depressão e tenta dar fim na caixa, mas ela era indestrutível. Por fim, ela se mata, por não conseguir continuar vivendo carregando aquela maldição. Comumente, a expres

TELA AZUL

Meu recente deslumbramento com a qualidade dos livros de Fernanda Torres permitiu que eu olhasse o livro da Maitê (É duro ser cabra na Etiópia) com olhar caridoso, adquirindo-o para o longínquo voo. A leitura diferente e intrigante, com textos de vários autores desconhecidos, rememorou em mim que o meu prazer de ler sempre foi equivalente ao de escrever. Apesar da voracidade para acabar o livro, a rinite estava atacada. Além disso, os últimos dias haviam sido bem cansativos. Decidi, então, tentar cochilar. Fone no ouvido, voo de cruzeiro. O barulho das crianças no assento de trás não era mais tão perceptível. O avião estava acima da enorme nebulosidade e eu observei a luminosidade variando na asa para avaliar possíveis turbulências. Tudo planejado, era hora de tentar dormir, coisa rara para mim em voos. Entre as variadas cochiladas, a mente tentava conciliar o descanso exigido e a consciência plena da situação. Num dos lampejos, após tornar a fechar os olhos, vi tudo azul.