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Amor e paixão de e por Caroline

Topei com Rafael, meu melhor amigo do colégio, num Shopping Center de Salvador. Reconhecemos-nos de imediato. Dei-lhe um abraço e lhe parabenizei pelos feitos passados de sua perna esquerda, que, agora eu sei, hoje não faz mais do que alternar os passos com a sua perna direita, nas indispensáveis caminhadas suas de cada dia. Meu velho amigo me sorriu e me disse, surpreendentemente entusiasmado, que está estudando jornalismo, conforme ele planejara em todos aqueles anos. Eu fui testemunha desta sua luta, embora, depois de terminado o terceiro ano, nós tenhamos nos tornado apenas bons amigos de raros telefonemas e de escassas resenhas.

A perna esquerda do Rafael, ou do França, como ele era chamado por causa do seu nome de guerra, era mesmo mágica, naqueles tempos nossos dos tão aguardados campeonatos internos, que aconteciam geralmente nos meados dos outubros de cada ano letivo. Disputávamos com condições de igualdade em todos os anos estes tais campeonatos do colegial, mesmo quando ainda éramos guris da quinta série que se arriscavam contra brutamontes do segundo e do terceiro anos. Nunca fomos campeões, é bem verdade.

Mas os campeonatos eram como festas. O colégio parava. As meninas subiam ao primeiro pavilhão para ver. Algumas iam ao vestiário dizer últimas palavras de incentivo. Os professores ficavam de camarote e os melhores jogadores conseguiam algumas benesses com os sargentos, como manter um bom de um topete saliente por uma semana. Sucessos faziam os nossos topetes, hein, Rafa?

Particularmente, eu gostava quando o França me substituía porque, embora não tivesse ele o mesmo faro de gol que eu possuo, Rafael França jogava com classe, distribuía bons passes e era respeitado pelos adversários. Eu gostava da sua ambição. Era admirável o modo como ele, nos momentos que antecediam cada partida, tentava debalde trocar a minha dez pela sua 16. Eu não precisava lhe dizer nada, pois eu o dissuadia com um olhar para os nossos companheiros, que sempre souberam da sua intenção, mas nunca, é válido testemunhar, nunca deram a ele a chance de ser titular. De vestir a dez. Os nossos colegas muito o respeitavam, mas ele já sabia que a meia-esquerda era minha. Prioritariamente minha, França.

Quando iniciamos a nossa amizade, ainda no ano 2000, eu já havia desenvolvido um gosto descomunal por literatura e ele, Rafael França, embora não tivesse coragem de ler, passava algumas manhãs me fazendo perguntas sobre os livros que eu empunhava. Ele se sentava ao meu lado, sempre muito caladão. Mas sempre com um sorriso e uma pressa misteriosa antes e depois das aulas que fizeram com que - ele jamais soubera disso - algumas das nossas colegas me viessem fazer perguntas sobre ele. Mas foi mesmo assim, me perguntando sobre as vidas dos personagens de cada quinzena, que eu o conheci. Se hoje sou um adulto de meia idade que dedica a sua vida às letras, o sou também por causa da curiosidade de Rafael França, que me dava noções primeiras do que poderia viver a se perguntar um leitor. Rafael era o cara mais curioso que eu conhecia e hoje se tornou um bom leitor. Eu sei que sim. E, por ser ele um bom leitor e um grande amigo do peito, resolvi aceitar o seu pedido para publicar um conto romanesco em seu blog, antes de anotar o seu novo endereço de email e de me despedir.

Amei uma mulher. Amei uma mulher por um dia. Imensamente. Rafael desacreditava inicialmente no meu relato, mas, depois de ter escutado por completo a minha história, me disse, entusiasmadíssimo, que essa história mereceria um texto, e que o pessoal que lê o blog muito gostará. Tudo bem, então. Aqui está. Se ele acha mesmo que merece um texto, um texto essa história merecerá. E aqui está o texto que dedico a falar da mulher que por um dia amei. Amei, mesmo. Muito. Imensamente, eu diria. Amei por demais essa mulher. Mulher de meia idade como eu. Jovem e linda mulher. Cheirosa e formosa mulher. Mulher humana. E eu muito lhe amei naquele dia. Somente naquele dia, porém. Que mulher!

O França ficou divagando sobre se não estaríamos nós, os humanos, passando por um processo de involução da espécie, depois que eu lhe contei que não trocamos palavras diretamente, eu e a mulher que amei. Eu lhe disse que não, que era exagero de sua imaginação. Que aquilo fora apenas amor. Não havia nada de animalesco em nossos gestos, quando nos amamos, eu e aquela bondosa mulher. Fora apenas amor. Do mais puro. É bem verdade que eu não esperava amá-la e ser amado daquela maneira sem nem ao menos lhe conhecer o nome. Mas foi amor. Precedendo cada minúsculo sorriso, estava esta convicção impregnada como um selo de autenticidade no fremir dos seus diminutos lábios. Estava no olhar daquela mulher. Muito inteligente, por sinal. Suspeitei até que ela fosse originária de outro País. Mulher de traços muito finos. Elegantes.

Bebia ela um suco de suposto sabor exótico no mesmo Shopping Center em que, dias depois, eu viria a topar com o França. Só havia uma cadeira disponível na praça. Era a cadeira da sua mesa. Ao que sentei, ela me cumprimentou com um sorriso e me apresentou ao seu perfume. Doce fragrância. Cheiro de lavanda. Cheiro de exterior. Cabelos louros. Imaginei, pelo seu frescor singular, que é a partir daqueles cabelos que as indústrias produzem os melhores xampus da atualidade. Cheiro bom. Cheiro de louros cabelos encaracolados. Caracóis. Cabelos de caracóis – e louros. Longos e louros cabelos encaracolados.

Ela bebia o seu suco sem parecer se importar com o mundo. E eu me perdi na leitura que fingi iniciar. Passei a esquecer toda a história daquele livro, que também era um romance. Um romance inglês. Dos antigos. Dos bons. Estava eu na metade da história. Estava até empolgado com a leitura, pra contar aqui uma verdade. Mas nas linhas eu só lia as conjeturas impossíveis com aquela mulher à minha frente. Eu passei a mudar as palavras do texto. E ela continuou a saborear aquele suco multicolorido. Passei a aparentar inquietude. Ela passou a aparentar serenidade ainda maior. Reconfortavam-me aqueles quase-gestos, aqueles modos sutis de quase se mover. Perfume. Mais perfume me tomando o juízo. Esqueci de dizer que eu estava sentado à sua frente. Ou eu já disse? Já disse. Ela à minha frente. Pernas cruzadas e um lindo vestido floral. Bom decote. Boa visão.

Tomei coragem, sim. Tomei. Olhei pra ela, pondo o rosto um pouco à mostra, que me era até então encoberto pelo livro. Passei um tempo observando-a. Ela olhava em frente. Olhava na minha direção, mas mantinha aqueles olhos esverdeados mirados na capa do meu livro, como quem lê e relê o título. Ela passou a demonstrar interesse pela história. O seu olhar fazia menção de também querer conhecê-la a fundo. Não. Não aquela história. Não poderia haver melhor história do que uma história em que ela, aquela mulher à minha frente, pudesse ser protagonista. Ela merecia este feito. E continuava ela a sorrir. Sorria ora de canto, ora com todos os dentes. Variava ela os sorrisos. O seu perfume permanecia indo e vindo, na carona da ventilação do local. As suas pernas cruzadas. Paciente mulher. Acredito que ela ficou a esperar que eu lhe dirigisse palavras, ao invés de somente lhe observar.

Fiquei sem graça. Àquela altura já haveria uma platéia. Todo mundo estaria certamente a esperar por primeiras palavras. Alguns quase a me encorajar. Outros desejando o meu lugar. A mulher seguia linda. Sem nada tirar e sem nada acrescentar. Ela era linda. Eu não estou mentindo. Linda demais. Protuberante. Cheguei a pensar, num lapso de loucura, que toda aquela sua saliência teria saltado da ficção do meu livro empunhado para uma plena contemplação em minha vida real. Moça da literatura inglesa. Caroline. Lembrei: era assim que se chamava a mocinha do livro que eu deveria estar verdadeiramente lendo naquele momento. E foi esse o nome que eu falei em voz alta, quando pensei mais fortemente na idéia de que essa loucura, a transmigração de um personagem literário para o mundo real, pudesse mesmo estar acontecendo.

Ela reagiu. Ela reagiu, sim. Não sei ainda se pela surpresa ao me perceber rompendo o silêncio ou se por ser ela mesma uma mulher de nome Caroline. Eu sei que ela se reestruturou na cadeira e pôs um pouco de seriedade em seu semblante, sem, no entanto, quebrar todo o seu encanto. Ela permanecia linda. Eu calibrei a voz. Tentei evitar o trepidar na entonação e, somente quando me veio essa certeza, continuei dizendo, como quem dava continuidade à leitura, numa tentativa desesperada de tocar o seu âmago, em voz alta, que Caroline estava sozinha.

Caroline estava sozinha, alheia à multidão, recém chegada num País por ela totalmente desconhecido. Fugira de Winchester no mesmo dia em que estava marcado o seu casamento. Casamento arranjado, pensava, sorrindo. Saboreou com a bebida que tomava um gosto que lhe era intimamente como que o gosto de uma grande vitória. Enquanto sorria, lembrava-se da maldade dos seus pais. Malditos pais. Tencionavam eles casar a sua filha, única filha, em troca de uma falsa ascensão à alta sociedade. O seu noivo era filho de um aristocrata. Seriam novos tempos, após o casamento, como insistia em afirmar a sua mãe. Época de ouro para Caroline e para a sua família. “Teremos uma vida digna, minha filha”, dizia a sua mãe.

Os novos tempos não vieram, entretanto. Não como planejara a sua amorosa mãe. Caroline lhe devia gratidões, era também verdade: fora ela a sua criadora, afinal. Fora ela quem, com rigor, ajudara a moldar a admirada personalidade da para sempre little Carol. Mas Caroline, em segredo, crescera de modo diferente. Nunca aceitara meias-verdades. Vivia a fazer perguntas. Respeitava a sua capacidade de pensar. Sentia-se única. Não gostava da idéia de ter de se tornar, tão logo completasse 18 anos de idade, subserviente a um ser de sexo oposto.

Mas ela somente passara a ansiar por igualdade e por liberdade a partir do primeiro livro que lera em sua infância. Os livros eram jogados feitos tralhas pelo seu pai no porão de sua casa. O seu pai era um estimado padeiro e eventualmente ganhava livros em permutas. Foram esses os livros, livros dos mais variados, que alimentaram e que verdadeiramente formaram o caráter da little Carol.

O patriarca da família era um homem adorável, mas desacreditava nas idéias que podiam constar daquele monte de livros imprestáveis. Serviriam para as fogueiras dos invernos, apenas. Era assim que ele pensava e, por assim ele pensar, Caroline era impedida de se aproximar daquelas obras. Mas, às madrugadas, ela descia ao porão. Lia à luz de velas. Por longos minutos, fixava o verde dos seus olhos nos títulos de todos os livros e, através destes primeiros olhares, imaginava-lhes os conteúdos, o que lhe dava alguma segurança para somente então um deles escolher e iniciar mais uma leitura.

Caroline rechaçava internamente a educação imposta pela sua mãe, embora jamais tivesse proferido palavras de contrariedade ou jamais tivesse deixado de fingir consentimento. A vida lhe parecia mais diversa e mais sensata lá fora. Longe de Winchester. No Brasil, talvez. Por que não? Ela já ouvira boas histórias sobre o Brasil. Por que não fugir para o Brasil, então? Os seus pais não lhe entenderiam os pensamentos. A sociedade era retrógrada e ignorante. Um povo conservador. Iria ao Brasil. Seria outro lugar. Outros pensamentos. Seria outro tempo. Também viajaria no tempo.

No dia do casamento, com tudo previamente arranjado, Caroline fugira numa embarcação. Tencionava chegar a uma cidade do Brasil chamada Salvador. Houvera conseguido boas informações sobre Salvador. O povo de Salvador certamente lhe entenderia os pensamentos, e saberiam valorizá-la não somente pelo doce perfume, mas pelas palavras e pelas suas ideias. O seu plano de fuga era perfeito. O seu ex-noivo ficara a lhe esperar, juntamente com o grande salão e o número incontável de convidados. A noite de Caroline seria longe dali. Caroline passaria a noite no mar. Caroline iria para Salvador.

Cessadas as lembranças, ela continuou saboreando a bebida, sentindo a brisa daquele novo País, enquanto ouvia um jovem rapaz contar uma história à sua frente. O moço parecia querer lhe chamar a atenção, e falava com uma voz amigável, tornando ainda mais amistosa a tarde. Ela resolveu, então, que era aquele o momento certo para aceitar de bom grado uma primeira companhia. Permitiria que o rapaz se aproximasse...

Quando calculei ter eliminado as suas dúvidas sobre ser ela mesma a personagem da minha história, comecei a gaguejar. Fiz longas pausas, mas continuei a falar. Inventei, enfim, que Caroline estava diante do narrador daquele livro, mesmo que, sem muito sucesso, eu ainda tentasse fazer parecer verdadeiro o meu fingimento de que, de fato, estava mesmo eu lendo as páginas do livro que ainda me encobria a face. Eram minhas as palavras. Palavras saídas do forno do pensamento e proferidas todas elas em voz alta. Certamente fui também ouvido por uma multidão e concluí, então, que definitivamente já era o momento de parar.

Fiz uma nova pausa e descobri o rosto, dando lugar aos meus olhos novamente. Caroline permanecia à minha frente. Linda, irretocável e cúmplice. Não me disse palavras. Cessei a contação da falsa história e fechei o livro, pondo-o cuidadosamente sobre a mesa. E este é, pois, o texto da história que eu prometi ao meu amigo França. Um caso que aconteceu comigo e que Rafael França, que é meu amigo, muito gostou, principalmente do final, que eu não vou contar aqui, mas que contei a ele, que é muito meu amigo e - ele me contou, como quem me paga com um segredo - que está sem o menor saco para escrever.

Comentários

Anônimo disse…
Foi Rafael mesmo quem postou esse texto? Sua mente é bastante fértil, você pode evoluir muito como contista.


:)Mariana :)

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