Sem temer represálias, ele resolveu sair do armário. E, embora as feições e os traços que o identificam, ele diz, não possam jamais ser reconhecidos pelos homens, o Senhor Letal, o ser que, há milênios, garante, decepa vidas durante madrugadas inteiras, finalmente assume os seus crimes dos lusco-fuscos. Animado com a possibilidade de transcender figurativamente a sua virtual existência e de preparar os mortais para o que ele chama, com uma cultura invejável, de “inevitável confluência”, ele, cantando as palavras, que somente chegam à luz da compreensão quando o seu interlocutor retorna, com vida, dos cenários oníricos, manda um recado: “sou o medo dos homens, atuo na escuridão e jamais serei pego porque sou intangível”.
Ele não sai da penumbra e afirma viver das palpitações dos neurônios ou dos anseios da alma de quem o invoca. Não conhece a vida, não a vida real, como todos os homens conhecem, mas reconhece todos os caminhos do que ele chama de “o mundo paralelo”. O Senhor Letal, que afirma ter nascido - sem acrescentar ao seu discurso certezas incontestes de aparato científico ou de convicção religiosa - à época que nascera o mundo e que jura ser uma alma imortal, é habitante dos sonhos, ou melhor, dos pesadelos. A sua forma? “Não tenho um rosto fixo”, ele diz. “Posso ter as formas do vizinho inescrupuloso ou as feições, a fala e os gestos da esposa traída que deseja se vingar. Posso ser quem a vítima quiser que eu seja”, ele afirma, excitado com as palavras que escolhe e indisfarçadamente empolgado com a conversa.
O Senhor Letal se considera ainda, pelo sem-números de crueldades que, ele jura, seriam de sua autoria, o maior inimigo do homem. “Sou até mesmo o motivo para a dor de cabeça inexplicável pela manhã”, ele conta, ao se referir ao mal-estar que, quando acorda, a pessoa que sofrera de um pesadelo com ele passa a se sentir acometida. Ele garante conhecer todos os truques e que as suas investidas mal sucedidas de assassinato são, na verdade, concessões feitas àqueles que não desistem facilmente, que não se entregam à morte sem antes, pelo instinto natural de sobrevivência, tentar manter incólumes as suas vidas. “Para eles”, ele diz, com o que parece ser a sua voz pesada pelo cansaço, “para eles eu retardo alguns passos, mas conheço todas as possibilidades de fuga”.
Irresoluto com a impossibilidade de transmigrar para o mundo real, ele revela a sua angústia e assume querer conhecer o mundo de que somente lhe chega à imaginação através de frases quase indecifráveis das suas vítimas, ditas certamente no pré-morte, antes da consumação do ato que sempre o consagra como algoz. “Às vezes não dá tempo de ouvi-los falar. A maior reclamação que ouço, entre palavras entrecortadas, é a de que eles têm amor à família e de que, por isso, vai saber, não podem morrer. Não tenho tempo de lhes dizer que não sei o que é o amor e que não tenho família e que, portanto, não sei do que tudo isso se trata. Não tenho tempo de lhes dizer que não posso evitar as suas mortes. Eles que, em sobressaltos, acordem em seu mundo, se quiserem sair vivos do meu”, diz o Senhor Letal, em ritmo acelerado, como quem desabafa contra a inevitabilidade da sua natureza.
Se é verdade o que ele afirma sobre a sua eterna e imortal existência, a conclusão que ele propõe sobre o possível legado dos seus métodos abre espaço para uma dúvida substancial: quem aprende e quem ensina quando o assunto é morte? “É óbvio que eu sou o criador”, ele diz, convicto. “Os assassinatos que os homens cometem no mundo real são aprendidos comigo. É preciso ser antes vitimado para, somente então, vir a se tornar um assassino. Defendo a tese de que os criminosos do outro mundo o são porque morrem mais vezes no meu mundo, porque procuram o perigo durante o seu estado de embotamento. Eles se expõem com maior freqüência nos mais tenebrosos cenários que crio e se postam como potenciais vítimas e, de verdade, eu posso medir a curiosidade em seus olhares. Eu acabo por ensiná-los os rituais da morte. E eles aprendem”, arremata.
“Sinto remorso apenas quando tenho que assassinar criancinhas”, ele revela, quando perguntado sobre se, alguma vez, já se arrependera dos seus serviços. E se arrepende? “Não. Essa é a minha profissão. Confesso que até tento ajudá-las, mas elas trazem para os seus pesadelos a inocência que ainda lhes é peculiar. Na mítica ilha da primeira infância, em que tudo parece lúdico e indolor, as almas pequeninas que lhes representam confiam facilmente em mim, seja qual for o meu disfarce”. Se o sofrimento de crianças é também parte do ofício e se o abatimento delas é inevitável, por que, então, ele sente remorsos? “Gosto das crianças. Elas são as únicas a tentar me entender”, ele revela e, pela primeira vez desde o começo da entrevista, o velho se mantém um longo tempo absorto num silêncio sepulcral.
Antes de se despedir, o velho assassino elogia os homens pelo destemor com que o encaram freqüentemente, antes do dilúculo de cada dia. E, brincando como quem, em segredo, sente que ultrapassará, representado num texto jornalístico, a fronteira entre os mundos real e imaginário, diz que não costumava proferir tantas palavras. “E isso” - ele começa a dizer, certamente com um sorriso em sua face – “quando acontece, só pode ser testemunhado em manhãs, tardes e noites”.
Comentários
MASARACHAMADOGO
Bjocas :)
Mariana, Dourados/MS
Grande abraço.