Pular para o conteúdo principal

O segredo

- Olá.
- Oi.
- Posso me sentar aqui?
- Sim. Fique à vontade.
- E então, o que será dessa noite? Vai manter essa cara de derrotado?
- Derrotado? Eu? Você nem me conhece e vem falar comigo desse jeito. E você? O que você é?
- Eu? Smrf. Não sou uma derrotada, como você. Eu apenas reinvento vidas. Olho para as pessoas ao meu redor e voilà: crio histórias para justificar as suas existências. Crio coincidências. Imagino os percursos que precedem os nossos encontros. Quero sempre saber como viemos parar no mesmo lugar, por que viemos etc. Eu o observava e, então, passei a criar uma vida pra você. Mas não resisti. Vim lhe conhecer. Vim conferir se estavam certas as minhas previsões.
- Sério? Que coincidência. Você reinventa vidas; eu as invento.
- Inventa vidas? Como?
- Eu crio personagens e os guardo em arquivos de textos.
- Então você é um escritor.
- Um pretenso. Pretenso escritor. Tornar-me escritor é um sonho. Digamos que eu apenas os guardo para, quem sabe, poder vendê-los, um dia, a um escritor de verdade. E você, é uma escritora?
- Não. Os meus personagens têm vidas efêmeras. A sua vida, por exemplo, somente duraria enquanto durasse a minha sede. E, confesso, não sou boa de escrita. Mas imaginei uma vida para você, enquanto consumia o seu fracasso revestido de silêncio.
- Quem lhe disse que eu sou um fracassado? Eu só me mantive em silêncio porque estava ocupado. Eu também pensava em você. Usei a sua imagem para criar uma personagem de um conto que pretendo escrever. Você, aliás, está aqui a trabalho.
- Como? Está mesmo me dizendo que eu estou a trabalho, a essa hora da noite, mesmo me vendo em deleite com um copo de vodca numa bancada de um bar?
- Não aqui. Você está na cidade, digo, a trabalho. E você é de outro Estado.
- Então eu também me tornei uma personagem, agora, senhor “Solitário que pensa estar a perder a esposa para o melhor amigo de infância”? Os modos como eleva o copo à boca e como fecha os olhos enquanto a bebida lhe queima a garganta não escondem a sua amargura. Você ainda pensa nela.
- E você? Você ainda não tem certeza sobre se deve continuar a sua carreira de bandeirinha de futebol declinante. Você teme o preconceito machista. Você está aqui neste bar lutando contra a sensação iminente de ser vaiada por uma multidão. Sabe que não pode mais errar.
- Não posso mais errar? Por quê?
- A sua carreira está ameaçada. E você sabe disso. Você errou ao invalidar aquele gol no jogo de quarta-feira à noite: o atacante estava em posição legal. Não foi impedimento. Mas eu entendo: foi a primeira vez em que você atuou num jogo transmitido pela tevê.
- E você acha que ele perdoará você?
- Quem?
- O seu melhor amigo. Acha que ele perdoará você? Acha mesmo que ficará tudo bem, depois das ameaças que fez a ele? Você pôs uma arma em sua cabeça, por desconfiar de que a sua mulher o traía com ele, com o seu melhor amigo. Você ainda está tomado pelo ódio e está a se perguntar por que não o matou. Já está na sétima dose de whisky. Bebe para curar a sua dor. Mas ela não lhe traiu.
- Não? Como sabe? Aliás, quem é ela? De quem você está falando?
- Você sabe de quem eu estou falando. Ao que tudo indica, a vida que imaginei para você é inteiramente verdadeira. Quer que lhe diga mais? Você é ainda um gerente de um grande banco que já não gosta da sua profissão; não tem filhos; está brigado há oito anos com os seus pais; e sente uma atração secreta por uma moça mais jovem que...
- Você está me deixando confuso.
- Não me interrompa. Deixe-me continuar. Deixe-me desfiar a sua vida por inteiro.
- E não lhe interessa a vida que inventei pra você, senhorita? Só você pode falar, aqui? Acha que não sei por que entrou para o futebol? Acha que todos não sabem?
- Do que está falando?
- Por que mudou as feições? Acho agora que você não é a única com a sensação de acerto, por aqui. Toquei na ferida. Não toquei?
- Não sei do que está falando. Você é louco. Eu só vim aqui me distrair, tá? Não tenho tempo para bobagens. Você é maluco.
- Veio apenas se distrair e não atuará numa semifinal, amanhã? Veio se distrair assim, vestida desse jeito? De terno e com essas malas enormes? Onde estão os seus parceiros? O trio de arbitragem está desfalcado por quê?
- Eles perderam o vôo. Virão pela manhã.
- Está me dizendo que acertei, mesmo?
- Deixe-o em paz, por favor. A sua esposa ama a você como a si mesma.
- Eu sei. Eu sei. Mas tudo indicava que eles estavam saindo.
- Volte para ela. Eu vi a cena. Digo, eu imaginei a cena. Ela ficou a chorar na cozinha, depois que você saiu de casa.
- Não deixe o futebol. Você errou, mas saiu de cabeça em pé. Assuma o erro e não haverá o que temer. Use a mídia. Vá à televisão. Você é competente.
- Por que estamos agindo assim?
- Como?
- Por que estamos sendo tão gentis um com o outro?
- Porque isso faz parte do script.
- Alguém nos inventando?
- Não.
- Por que não?
- Seria loucura.
- Nos odiávamos, no começo da conversa.
- Sim. E daí?
- E daí que eu estou olhando pra você de modo diferente. Não era a minha intenção inicial. Eu não sentia nem mesmo a compaixão que costumo sentir por outros personagens.
- E eu olho diferente pra você desde quando descobri o delineamento perfeito das suas curvas.
- As minhas curvas? Você descobriu “o delineamento perfeito” das minhas curvas nesses trajes aqui? Eu estou de calça, meu bem. Estou de terno. E você não tem visão de raio X. Mas eu sou uma bandeirinha de futebol. Logo, é presumível que eu faça musculação. E você pode ter assistido ao jogo, na última quarta-feira.
- Não. Não assisti. Eu acompanhei os seus passos desde a sua saída de casa para o aeroporto. Vi você trocar de roupa e escolher meticulosamente uma calcinha vermelha, antes de chegar à minha cidade, antes de adentrar este bar. Você, ou os seus pensamentos, não sei, me apresentou até os motivos para essa escolha. Fiquei feito um louco, em casa, tentando parar o meu cérebro. Havia uma voz narrando os seus passos. A imagem que tive de você era perfeita. Isso nunca me ocorrera. Vim beber. Pensei ter ficado louco. E aí, o que me acontece, então? Você, a personagem que se impunha em minha imaginação, resolve aparecer no mesmo lugar que eu.
- Então eu estava mesmo certa.
- Certa sobre o quê?
- Há uma mente superior. Alguém está a colocar as palavras em nossas bocas. Você não percebe?
- Não. Mas, diante de toda essa confusão, eu não ficaria surpreso se acordasse sobressaltado de um sonho.
- Não é um sonho, imbecil. Você não consegue ouvir?
- O quê?
- As batidas aceleradas no teclado. Sem cometer incorreções, ele digita as nossas falas com uma incrível velocidade, como se tivesse passado os seus últimos dias com esse texto na cabeça.
- Não ouço nada. Mas gostei da idéia de saber que, em sua loucura, a pessoa que inventa as nossas vidas é nosso contemporâneo.
- Por quê?
- Já pensou se ele fosse um octogenário conservador? Já pensou se ele fosse um visionário, escrevendo à mão, em pleno século XVIII? As moças de antigamente, em sua imaginação, não seriam tão protuberantes como você, a moça que ele me apresentara e que agora pôs em minha frente. E ele, se visionário fosse, não saberia traçar a beleza e o charme das mulheres do nosso século. Tomara ainda que ele tenha planejado um gran finale para nós dois.
- Grandíssimo final, querido. É claro que ele nos reservou a morte! Ele deve querer algo de nós. Está só esperando que satisfaçamos o seu desejo.
- Estou ficando com medo de você. O que pensa que ele quer?
- Ainda não sei. Os pensamentos dele estão em profusão. Ele não me permite pensar. Ele apenas me permite falar e, quando dou uma pausa, ele me tira a voz e deixa que você fale. Ele me bloqueia. Enquanto você está a falar, eu não consigo pensar. Não percebeu como temos falas alternadas?
- Mas é mesmo assim que os diálogos costumam ser, querida.
- Não esse diálogo. Não o nosso diálogo. Eu sou a única aqui que não tem memória? Lembra-se de alguma vez ter mencionado o seu nome? Você sabe qual é o seu nome? Eu não sei qual é o meu.
- Como eu não saberia qual é o meu nome? Ficou louca?
- Então, qual é?
- Não sei.
- Ele nos colocou frente a frente e nos deu a responsabilidade pela vida um do outro. Se eu dissesse que você seria um advogado, em lugar de um gerente bancário, então assim seria. Do mesmo modo que você poderia me fazer aeromoça; não bandeirinha de futebol.
- E por que ele a fez mais esperta do que eu? Por que as suas presunções parecem sempre mais assertivas?
- Porque você deve ser o seu alter-ego.
- Como assim?
- Ele deve ser um homem de poucas palavras, como você. Vocês são igualmente tímidos. Você, como ele, não arriscaria me dirigir palavra, se eu não me aproximasse.
- Que ótimo. E o meu alter-ego também pensa ter perdido a mulher da sua vida, como eu?
- Acho que foi só uma idéia que ele instalou em minha cabeça. Lembre-se de que essa fala foi minha. Foi só um tempero que ele concedeu para o nosso diálogo. Até mesmo essa minha resposta negativa é uma tentativa dele de realçar que não, ele não pensa ter perdido a sua mulher. Ele, ao que me parece, está solteiro. E há muito tempo.
- Acha que ele é um escritor romancista, realista ou tragicômico?
- Não sei. Mas posso sentir a sua ansiedade. Ele é um aficionado por histórias, por cinema e por literatura. Ele tem devoção pelas palavras que escreve. Sempre que ele julga ter construído uma oração minimamente bem elaborada, atinge a graus elevados de excitação. Perambula pela sala. Destila alguma bebida. Bate no próprio peito. Cria manchetes de jornais com o seu nome. Enfim, é um sonhador.
- Sonhador?
- Sim. As nossas palavras são tão chulas, ora bolas. Ele é um escritor amador. E esse é o seu perigo.
- Por que ser amador o tornaria mais perigoso?
- Porque os amadores são imprudentes. Não lidam com a literatura tão cartesianamente como deveriam. Não ligam para incongruências textuais. São apenas bons de gramática, e acham que isso é suficiente. O engraçado é saber, no fundo, que essa minha fala é uma autocrítica dele.
- Puxe logo o gatilho. Seria melhor se você me matasse sem toda essa sua loucura. Prefiro morrer inesperadamente. Não está vendo que você é a única pessoa com uma mente insana por aqui? Eu não entrarei nesse seu jogo.
- Está mesmo achando que o nosso criador é também uma invenção minha?
- Você, como eu, cria personagens e histórias. E esse me parece ser o seu ápice de loucura.
- Ah, é? Então vamos ver se conseguiremos boicotar o texto dele. Isso deve ser uma crônica carregada de travessões. Tentemos ficar em silêncio, então. Deixemos que ele fale. Que ele narre os nossos gestos e descreva o ambiente.
- Fiquemos em silêncio, então.
- Cala a boca. Você não deveria ter dito mais nada.
- Eu só concordei com você.
- Aí. Falou de novo. Idiota!
- Quer saber? Eu vou embora. Fiquei aí com sua loucura.
- Não se vá! Converse comigo. Essa é a única forma de nos mantermos vivos.
- Bem que eu queria lhe deixar aqui, sua louca, mas não consigo levantar.
- É claro que ele não permitirá que você fuja. Tudo o que ele quer é que contemos o seu segredo para, somente então, assassinar a nós dois.
- Como acha que ele faria isso?
- Pondo um ponto final em seu texto: sem essa nossa conversa, não teríamos mais chances de vida. Não existe para nós passado e nem futuro. Trate, então, de não contar, em hipótese alguma, qual é o segredo dele, se quiser se manter vivo.
- Mas eu nem sei qual é esse tal segredo. Qual é o segredo dele?
- Vem aqui que eu vou lhe falar, mas vou falar baixinho.
- Fale, então. Ele não ouvirá e nós não morreremos. Fale. Ande logo.
- Ele está apaixonado.

RF

Comentários

Rosane Santiago disse…
Adorei, ótimo texto! Parabéns ;)
Anônimo disse…
Bela metalinguagem. Bela metáfora. São esses recursos que tornam a linguagem tão perfeita, tão plena, tão profunda. E como é bom ler sem querer ver o final, sem querer descobrir o segredo, apenas apreciando a arte e a loucura. Foi muito bom.

MASARACHAMADOGO
Anônimo disse…
O segredo, no fim das contas, continua sendo um grande segredo. Seria o mistério da vida? Ou o suspense das parcas explicações? Gosto de escrever e por isso me sinto mais como Deus do que como marionete. É ruim admitir que somos personagens,pois não tem rasqueado que nos apazigue e nos anime quando pensamos na ausência de vida.

:) Mariana :)
Anônimo disse…
Achei o texto legal pra ler. Um diálogo sugestivo, intrigante. Dá para perceber que as palavras foram propositadamente colocadas. Bom saber que existem textos legais na blogosfera e escritores desconhecidos de grande potencial.

Carolina Araújo, Dourados/MS
Anônimo disse…
Descobri o blog de vocês pesquisando no Google sobre a irmã Edmeia Williams. Como vocês a conheceram? O text sobre ela está muito bom! Comecei a olhar outros textos daqui e gostei bastante.

Há uma mistura boa de gêneros. 'O segredo' é interessante, mas é difícil manter segredo quando estamos apaixonados. E é claro que existem segredos debaixo do céu que não descobriremos nesta vida. Mas mesmo assim não custa nada procurar.

Que Jesus abençoe você!!!
Rafael França disse…
Agradeço pelos comentários unanimemente positivos. Foi muito prazeroso conceber que o nosso blog permanece ultrapassando as fronteiras e sendo lido por um público diverso, amante de literatura e que não se furta ao direito de findar a leitura do texto, mesmo sendo ele extenso e desconexo como o que aqui se apresenta.

Sobre Edmeia Williams, escrevemos um texto, sim, assinado à época pelo nosso colaborador Tiago França, que fora espectador de uma palestra ministrada por ela, numa ocasião em que ela visitara Salvador. Ressaltamos, na oportunidade, o exemplo de benevolência e de solidariedade da pastora Edmeia e os seus ensinamentos.

À Mariana e à Carolina Araújo, moças que fizeram a gentileza de nos brindar com os seus primeiros comentários, fica aqui o convite para novas visitas e para uma possível contribuição para com o blog, visto que parecem ser ambas igualmente estudantes de jornalismo - mas não somente por isso - e que, conforme anunciado, são também amantes de letras e de prosas.

Obrigado também a Rosane pelo retorno à nossa página. Volte sempre.

O blog, que agora ganhou novo ânimo, haverá de continuar: temos ainda alguns muitos textos na gaveta.

Cordialmente,

Rafael França
Gabriel França disse…
Nem vou me estender muito em palavras. Quero apenas dizer que esse foi o melhor texto que eu já li deste autor. Meu irmão, a história está perfeita. Parabéns mesmo!
Unknown disse…
Este comentário foi removido pelo autor.

Postagens mais visitadas deste blog

EDMÉIA WILLIAMS - UM EXEMPLO DE FORÇA E CORAGEM

Vivemos em um mundo altamente egoísta. São raras as ações de humanitarismo e solidariedade. Por isso mesmo, elas merecem grande destaque. São poucos os relatos de pessoas que abandonam o seu cotidiano e a sua comodidade para contribuírem para o bem-estar do próximo. A “personalidade da semana” do INTITULÁVEL é uma dessas exceções da sociedade hodierna. Edméia Willians nasceu em Santarém, interior do Pará. Entretanto, sua família migrou para Salvador, na Bahia, onde ela passou a maior parte de sua vida. Aqui ela cresceu, realizou seus estudos, se casou, constitui família e obteve os bacharelados em Pedagogia, Filosofia, Psicologia e Música. A sua vida era normal, como de muitos. Passou a morar no Rio de Janeiro, devido ao emprego de seu marido. Chegou até a morar no Iraque, ainda na época de Sadan, também por motivos profissionais relativos ao seu esposo. Tudo transcorria normalmente até que duas tragédias mudaram a história de sua vida. Em um período muito curto, Edméia perdeu o seu es

POR DENTRO DA CAIXA DE PANDORA

Mais uma operação da Polícia Federal. Seu nome: CAIXA DE PANDORA. Os resultados: corrupção, caixa dois, mensalão. Envolvidos: José Roberto Arruda (DEM) - governador do Distrito Federal , Paulo Octávio (DEM) - vice-governador, Durval Barbosa (o delator) - secretário de Relações Institucionais do Distrito Federal e mais uma corja enorme de deputados distritais corruptos. E o que podemos aprender com tudo isso? Vamos começar pelo excêntrico nome da operação policial. Pandora é uma personagem da mitologia grega, considerada a primeira mulher, filha primogênita de Zeus. A famosa Caixa de Pandora era usada por ela para guardar lembranças e a sua mente. A tragédia aconteceu quando ela guardou lá um colar que seu pai havia dado a ela. A caixa não podia guardar bens materiais e por isso o colar foi destruído. Pandora entra em depressão e tenta dar fim na caixa, mas ela era indestrutível. Por fim, ela se mata, por não conseguir continuar vivendo carregando aquela maldição. Comumente, a expres

TELA AZUL

Meu recente deslumbramento com a qualidade dos livros de Fernanda Torres permitiu que eu olhasse o livro da Maitê (É duro ser cabra na Etiópia) com olhar caridoso, adquirindo-o para o longínquo voo. A leitura diferente e intrigante, com textos de vários autores desconhecidos, rememorou em mim que o meu prazer de ler sempre foi equivalente ao de escrever. Apesar da voracidade para acabar o livro, a rinite estava atacada. Além disso, os últimos dias haviam sido bem cansativos. Decidi, então, tentar cochilar. Fone no ouvido, voo de cruzeiro. O barulho das crianças no assento de trás não era mais tão perceptível. O avião estava acima da enorme nebulosidade e eu observei a luminosidade variando na asa para avaliar possíveis turbulências. Tudo planejado, era hora de tentar dormir, coisa rara para mim em voos. Entre as variadas cochiladas, a mente tentava conciliar o descanso exigido e a consciência plena da situação. Num dos lampejos, após tornar a fechar os olhos, vi tudo azul.