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Carta ao meu amigo imortal

Recordar-me de quando lhe vi pela primeira vez, meu grande amigo imortal, me exigiria um desmedido esforço da memória. Eu não saberia lhe precisar a data ou a tarde de verão que marcou o nosso primeiro encontro, mas, acredite, gostei de você logo no primeiro momento. E, mesmo saindo ferido e sofrendo conjuntamente com as intempéries em sua vida, permaneço leal a você. Fomos apresentados, sem cerimônias, pelo meu pai. Ele me levou à sua casa e me pôs à sua frente. Você estava com 96 anos.
Na ocasião, como há muito tempo já lhe é habitual, você emprestava a sua majestade a um grupo composto por nativos e por legionários. O grupo utilizava um uniforme que fazia alusão direta a você. A sua existência, até então, era para mim algo magnanimamente incompreensível. Impalpável. Intangível.
Aqueles que já o conheciam e que também o admiravam, antes mesmo da nossa primeira apresentação, precipitavam os olhares e os gestos, na expectativa da sua chegada. Eles levantaram. Começaram a aplaudi-lo. A gritar. A bater palmas. Os gritos iam se espalhando. Eu percebia que, à medida que uns seguiam cantando músicas para você, outros, mais ao longe, também se iniciavam na celebração. Os mais tímidos também se levantavam, aos poucos. Até que todos ficaram de pé e eu, ainda uma criança, permaneci sentado, envolvido secretamente pelo ritmo, à sua espera.
Parecia, amigo, que você voltava de uma longa viagem: aquelas pessoas expressavam uma incontida saudade de você. O amor que brotava das palavras, dos olhares e dos gestos de quem o exaltava foi tomando conta de mim. Segurei o meu pai pelo braço. Estiquei-me. Fiquei de pé. Até que você, ou algo de você, eu ainda não sabia, invadiu o lugar. A alegria, em sua casa, era diferente: era como um combustível inflamável – e contagiante. As pessoas pularam quando lhe viram. Elas cantavam ainda mais fortemente. Os fogos no céu coincidiram com a sua entrada. Tudo era musical e visualmente apaixonante. Tudo parecia magicamente ritualístico.
A tarde terminou alegre – você vencera a batalha – e a noite se iniciou com as minhas reflexões infantis. Eu havia tomado uma decisão, então: seria seu amigo. Você houvera me escolhido. Só podia ser isso: o modo como me apertara o peito e me tocara o coração não poderia significar outra coisa senão uma súplica por apoio. Teríamos firmado um compromisso.
O amor é um sentimento que pode, sim, ser transmitido pelos homens, eu viria a concluir, anos mais tarde. Primeiro foi o meu pai que, eloqüente, já ia me convencendo no caminho da minha casa para a sua sobre como você, exatamente como os felinos, ele me dizia, era forte e destemido. “Forte e destemido como um grande tigre branco?”, eu devo ter lhe perguntado. “Como um leão”, ele teria dito, “como um grande leão”. Depois, conheci toda aquela gente loucamente apaixonada por você. Não sei se pela junção das cores que o revestem, se pelas histórias que ouvi, ali mesmo, sobre você, ou se pela esperança de vê-lo glorioso. De vê-lo reconhecidamente congratulado. Não sei o quê exatamente me tornou mais um seguidor. Sei apenas que quis igualmente fazer parte do grupo que, logo descobri, tinha tocantes histórias de sofrimento para contar.
Soube, então, das suas derrotas. Do modo como apanhava. Como fazia toda aquela legião sofrer. Mas, amigo, o que mais me fascinou foi saber que, mesmo assim, mesmo sofrido, caído ou humilhado, você conseguia se manter digno, altivo e majestoso. As pessoas têm muito orgulho de você. Desde então, meu amigo imortal, vou sempre que posso à sua casa. Aprendi a citar o seu nome para falar de amor. Se alguém não sabe o que é o amor, vou lá e falo sobre você. E, com a mesma ansiedade de um menino, ainda espero você ressurgir, a cada confronto em sua arena. Acredito sempre em você. Confio sempre no seu triunfo. Eu aposto em você.
Hoje, você está novamente ferido, amigo, e eu não posso negar que a sua dor é também a dor do meu coração. Contive as lágrimas, entretanto. Estancar o seu sangramento levará tempo, eu sei. Um ano, talvez. Mas eu já estou acostumado com os seus tropeços - com as suas quedas. E se, confiante, lhe chamo de amigo imortal, é porque sei que o amor por você permanecerá intocado entre as gerações futuras. Hoje não choro, amigo, porque sei que a admiração por você cresce a cada dia. Como também crescerão apaixonadas as crianças de hoje, que, como eu, estão esperando você voltar. Volta, então, leão, para a primeira divisão.

RF

Comentários

Anônimo disse…
Se todos vivessem o amor dessa maneira, o mundo seria outro. Viver esse amor em todos os sentidos, nas relações interpessoais, na convivência em sociedade, no trabalho e no lazer contribuiria para o crescimento de todos os cidadãos.

Revelar o amor é sempre nutritivo. Acreditar na mudança e no reerguimento é sempre salutar. Na prova é que se demonstra o verdadeiro caráter e o verdadeiro amor.

De volta aos tempos de morangos. Em breve.

MASARACHAMADOGO
Gabriel França disse…
Um belíssimo texto! Ótima escrita, belas palavras e tudo mais. Porém, o amor referido eu não sinto. Você demonstrou e demonstra muito bem esse seu sentimento. Mas, o máximo que posso fazer, é cantar a música do elevador. Nada de tempo de 'morangos'. Fica, leão, na segunda divisão!
rsrsrs..

Abraço!
Quéren disse…
Amei o texto. É engraçado como podemos demonstrar amor por tudo. Achei apaixonante seu texto, sua escrita e o amor pelo seu amigo imortal. Imortal para todos nós.


Com certeza virão os tempos de morangos!
Voltaremos à Pasárgada!

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