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Pênalti

O árbitro da partida titubeou um pouco. Esticou o pescoço, buscando um melhor ângulo. Olhou para o bandeirinha responsável por aquele lado do campo. Ouviu o clamor que vinha das arquibancadas. Avaliou a expressão do zagueiro. Do atacante de beirada cujo corpo tombara contra o chão da grande área, mediu a esperança depositada em seu olhar. Levou o apito à boca. Esperou pela reação do estádio. Resolveu agir. Soprou, enfim. O pênalti estava marcado. O jogo estava zero a zero e era disputado por um time grande e um time pequeno. O time pequeno jogava em casa. Perdera o primeiro jogo da final por 2x1, na casa do time grande. Esse era, então, o jogo de volta. Pelo regulamento da competição, para consagrar-se como campeão, o time pequeno precisava vencer pelo placar mínimo. Se triunfasse pelo mesmo 2x1, levaria a final para os pênaltis. Qualquer empate daria o título - mais uma vez – ao time grande. O time pequeno nunca fora campeão estadual. Aquela era a sua grande chance. A chance de ir além. De ganhar um inédito título nacional. O seu estádio encontrava-se lotado. Durante toda a semana, as emissoras de rádio e de televisão já davam por vencido o campeonato. O campeão seria o time grande. Ele seria o favorito. E isso seria indiscutível. Exceto para os torcedores do time pequeno: a esperança sempre estivera presente em seus corações. O time pequeno era reconhecidamente um time bravo. Aguerrido. Quando jogava em casa, impunha a sua força. Os adversários o respeitavam - e o temiam. Mas aquele era um jogo decisivo. Final de campeonato! Em pleno centenário do time grande, o time pequeno não poderia lhe pregar uma peça dessas. Ao vivo, o País inteiro assistia ao confronto. Parecia final de Copa do Mundo. A semana fora toda carregada de elucubrações por parte dos especialistas em futebol. As declarações passionais dos dirigentes envolvidos ganharam páginas inteiras nos jornais. Os torcedores do time grande, nos horários de almoço de cada dia, apareciam nos programas esportivos de televisão, vangloriando-se pelo último triunfo. Convictos, eles exibiam as suas camisas e beijavam-lhe os escudos. Faziam tremular as suas bandeiras e entoavam os seus cânticos mais urfantes. Os patrocinadores do time grande produziram novos comerciais para a tevê e, neles, associavam as suas marcas ao grande clube. Admitiram-se igualmente como torcedores. Ser campeão, para o time grande, seria como que um direito inalienável. Uma garantia divina. Se houvesse quem lhe tirasse o título naquele ano, o time grande contestaria, então, a legitimidade da conquista. Aquele fora um ano todo preparado para o sucesso. O time grande fizera grandes contratações. Trouxera um grande técnico e os jogadores que mais se destacaram no ano anterior. Os seus jogadores afirmavam, confiantes, que venceriam o time pequeno mais uma vez. O time pequeno tivera uma semana difícil. Ele nunca dispusera de um grande patrocinador. Os rendimentos dos seus jogadores mantiveram-se atrasados por toda a temporada. Alguns torcedores minimamente ilustres da pequena cidade ajudavam, vez por outra. Levavam comida. Ofereciam apoio. Um deles, o  micro-empresário mais bem sucedido do município, oferecera abrigo a três jogadores do elenco: o time pequeno não comportava todo o plantel em seu modesto alojamento. Os três rapazes abrigados na mais abastada das pequenas residências da cidade compunham o trio de zaga titular do time. Todos os dias, antes de dormir, eles eram conclamados por uma multidão. “Sejam campeões, pelo amor de Deus”, gritavam os torcedores em direção às janelas. O mais alto deles, um líbero de pouco mais de um metro e meio de altura, em resposta, saía à janela do quarto e acenava para baixo. E, comovido, ouvia a miúda cidade suspirar. Os gritos eram abafados pelo forte calor. Na pequena cidade, não chovia, não ventava e a população se alimentava apenas de futebol. Personalidades importantes de outras cidades do Estado e da Capital que acompanharam a boa campanha do time pequeno pela mídia, solícitos, foram à distante cidade pequena no dia do jogo. Os jogadores do time pequeno não dispunham de fama nacional. Não tinham carros. Circulavam a pé pela cidade. Quando um deles era reconhecido nas ruas, era um furor. O povo fazia uma grande festa. Formava-se um círculo em volta. Os torcedores atiravam perguntas no ar. Mas as respostas pouco importavam. Elas eram sempre engolidas por outras perguntas, pela poeira e pelo calor da cidade. Os torcedores davam-lhes beijos. Abraços. Na pequena cidade, todo mundo conhecia a vida dos atletas. O povo sabia diferenciar os casados dos solteiros. Conhecia os seus sobrenomes. As suas procedências. As onze únicas donzelas da cidade amavam todo o time. Escreviam-lhe cartas. E, embora anotassem os nomes de todos os titulares em seus cadernos, elas eram mais concupiscentes para com os atacantes. Sentiam pulsar fortemente os seus corações pelos pontas de lança, especialmente quando os viam correr de braços abertos para as arquibancadas, após cada gol realizado no campeonato. Em seus
âmagos, sentiam-se intensamente abraçadas. Os torcedores pediam autógrafos. Os jogadores que tinham nível escolar fundamental incompleto assinavam com lápis e canetas; os analfabetos melavam os dedões na graxa e marcavam as suas identidades em pedaços de papéis de pão. Os jogadores tinham outras responsabilidades para com o clube, dada a quantidade diminuta de funcionários. Eram ora meia-direita, por exemplo, ora massagista. Lavavam as suas próprias roupas. Revezavam-se nas atribuições. Iam alternadamente à única padaria da cidade. Sabiam o nome do padeiro e o de sua mulher. Conheciam os dezessete vira-latas do município. Davam-lhe sempre os ossos que sobravam do almoço. No pequeno refeitório improvisado, viam-se apenas doze banquinhos. O time titular e o treinador costumavam sentar-se e almoçar primeiro. Os reservas aguardavam, de pé. Em seguida, eles reutilizavam, além dos assentos, os pratos e os talheres. O time pequeno, após a classificação com dois empates nas semifinais para a final, passara a ser chamado pela imprensa de “o quadricolor do sertão”. A final era disputada contra o alvinegro mais imponente do País. O estádio do time pequeno encontrava-se inexoravelmente colorido. De um lado, branco e preto; do outro, laranja, vermelho, roxo e amarelo. Os repórteres e os cinegrafistas vestiam coletes verdes. O árbitro e os bandeirinhas enquadravam-se num marrom de bom tom. E todas estas cores contrastavam com o forte azul de um céu sem estrelas. Quando o atacante de beirada, aos quarenta e seis do segundo tempo, caíra na grande área, junto com os gritos vindos da arquibancada, ouviu-se um estrondoso relampejar vindo dos céus. Eram as nuvens cinzentas se encontrando. A precipitação foi inevitável. A chuva começou a cair com temível languidez. Foi ficando mais forte. Sob gritos de protesto e de euforia vindos das torcidas, ficava cada vez mais difícil enxergar o campo. A chuva despejava-se torrencialmente sobre todo o estádio. O árbitro, que caminhava em direção à marca do pênalti, cambaleante, desviou o caminho. Ninguém conseguia ver mais nada. Um repórter da maior emissora televisiva do País encontrou o vulto embaçado do árbitro e o puxou. Os dois se encaminharam até um cinegrafista. O árbitro consultou o replay. “Tá vendo a merda que você fez?”, perguntou o repórter. O atacante de beirada era jogador do time pequeno e simulara a falta. O árbitro pôs as mãos na cabeça. Sentiu-se tonto. Ouvia às críticas molhadas vindas da arquibancada. Pensou em sua carreira. Como quem se despede, tocou o emblema que o identificava como um condecorado árbitro da Federação Internacional de Futebol. Passou a temer os torcedores visitantes e à chuva. Não. A chuva, não. A chuva adiava a sua desgraça. E ela caía cada vez mais forte. Ela não poderia cessar. Os repórteres cuidaram de gritar para o alto a notícia, a fim de encontrar algum sentido apurado de audição nos membros da delegação do time grande. “Nã... foi pên...ti. ...cês Fo..m ro...ba...s”. As palavras chegavam entrecortadas. Mas o contexto tornava fácil a compreensão. O primeiro a invadir o gramado enlameado foi o presidente do time grande. O presidente do time pequeno, que também era o prefeito da pequena cidade, fazia contas. Na cabeça, após ouvir o apito que marcara o pênalti, ele passou a conjecturar o futuro PIB do seu pequeno município. Com esse título, viria uma competição internacional. Pensou nos investimentos a serem feitos na cidade. Nas grandes empresas. Pensou nos impostos. Ignorava a chuva. Os seus pensamentos só cessaram quando as nuvens se dissiparam. A chuva cessou o imbróglio e instalou o silêncio. O jogo haveria, então, de recomeçar. O árbitro ressurgiu. Saíra debaixo do guarda-chuva que mantinha distintamente brilhoso o logotipo da grandiosa emissora televisiva. Avaliou a arquibancada. Guiado por um riacho enlameado que serpenteava sobre o solo, retornou ao campo de jogo. Olhou para o relógio. Correu para o centro do campo. Olhou para o capitão do time grande. Deu-lhe um sorriso. Com um olhar mendigo, lhe pediu proteção. Elevou as mãos aos céus. Fechou os olhos. Apitou. Mantendo o mesmo zero a zero, acabou o jogo. Acabou o texto. Acabou o sonho.

RF

Comentários

Anônimo disse…
Gostoso ler um texto sobre futebol, mas é indubitavelmente melhor viver na pele a emoção desse esporte tão emocionante. A chuva - sempre ela - presente nos momentos mais importantes. E a decepção, tão temida, mas sempre presente de modo intermitente nas nossas vidas. O texto merece um quadro, tal qual ele se apresenta.

Foi muito profícuo estar aqui e extremamente valioso correr meus olhos sobre estas linhas virtuais.
ESCREVA MAIS!!!

MASARACHAMADOGO
Gabriel França disse…
Quando se trata de futebol e as emoções que o envolve eu sou muitíssimo suspeito para falar. Apaixonado pelo esporte, sinto mesmo na pele a paixão quando acompanho os jogos. E este texto, seja ele fictício ou não, retrata muito a realidade do esporte mais querido do mundo e as injustiças.
Valeu.
Abraço

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