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Carta aos meus amores oníricos

           Quero começar esta carta pedindo-lhes desculpas, meus amores. Desculpas por não especificar os nomes das mulheres da vida real com os quais vocês deveriam ter associadas as suas imagens. Por não lhes descrever, com singularidade nas palavras, tudo aquilo o que presenciei diante de cada uma de vocês. Mas, saibam, vocês foram mais do que imagens embaçadas pelos meus neurônios. E estiveram comigo em abraços, em beijos e em acaloradas madrugadas de amor. Em enigmáticas madrugadas de amor! Vocês assumiram formas tão reais que, nos momentos que antecedem o sono, tenho passado perfume para dormir.
Entre tantas outras felicitações - digo isso imaginando possuir a permissão de algumas de vocês -, comemoro o fato atual de não ter me sentido esquecido por algumas colegas de classe, tão esnobes a cada manhã. Algumas delas nada disseram; apenas sorriram. Outras me acenam, ao longe. Desejam-me um “bom dia”. Dizem “boa aula, Rafa”, de modo despretensioso. Não estendem as mãos para me cobrar o cachê pela participação especial. Tem sido tudo muito apaixonante e gratuito.
Algumas trouxeram a serenidade outrora aparente e distante à proximidade e ao calor do meu colo. Uma deixou de enrolar-se com as mechas dos seus cabelos para acariciar os meus. Deparei-me com uma que foi algoz numa cena; amante noutra. As aulas se tornaram menos entediantes, por eu carregar comigo os segredos e as nuances de cada uma. O olhar já não é mais o mesmo: ele desvia-se ligeiro, às pressas, me fazendo imaginar-me igualmente como personagem de um sonho alheio na noite anterior.
Uma bela moça, de quem me lembro comprometida nos tempos remotos do meu segundo emprego, amistosa, me trouxe um café, em certa passagem, e se perdeu por entre os labirintos sem dizer palavra alguma, dando vez a uma multidão multifacetada e desconhecida. Despertei na madrugada e fui me servir do café gelado sobre a mesa para comemorar a sua reaparição, saboreando com a língua a lembrança ainda recente e ainda emocionante que se repousava por entre os lábios. Essa não me deixou nem um telefone. Nenhuma pista.  
            Tateei o vazio da escuridão, quando, num outro sonho, a sirene convidou os alunos de volta às salas e interrompeu um beijo que fora tão desejado num passado do mundo oposto. A moça em questão não poderia ser outra senão você, meu bem, a grande paixão da minha adolescência. E você estava lá, como quem se dispunha a me dar mais uma chance. Mas a chance foi mesmo negada pelo enredo. Parecia obra de Woody Allen. Voltei a dormir, e fui inevitavelmente arremessado às palpitações sem importância. Corri de alguns vultos. Voei por alguns cenários. Lutei contra alguns monstros. Mas mantinha comigo a consciência daquele contato. Em outras histórias, o pensamento ainda permanecia vivo. Mas ele morreu quando nasceu o canto do despertador. Ainda tentei dormir no ônibus; não consegui. Resolvi imaginá-la novamente, em vão. Longe do sonho, você era como que um objeto inanimado. Como a moça mais bonita da nossa fotografia de formatura. Você não mais se movia. Não mais respondia às minhas insinuações.
            Esta carta é o meu agradecimento, meus amores. É a palavra que os recortes dos sonhos não lhes permitiram escutar. É o convite para novos passeios e novos encontros. É a passagem de ida para a cidade romântica em que cães nos servem vinhos e os nossos pais nos guiam em barcos velozes pelos ares. E, quando vocês, sonhando, a encontrarem em algum cenário onírico, me esperem: eu não haverei de acordar.

RF

Comentários

Quéren disse…
Ao ler seu texto confesso que ri. Tiago riu o dobro.
Mas o cometário será de outra dimensão. Estava a muito tempo aguardando você falar dos seus amores, oníricos ou não. Falar de amor é sempre tão bom! Imagine você que tem casos e acasos pra contar e com essa forma de escrever que só você sabe fazer.

Me fez lembrar da música "estórias" de Ana Carolina, ela cita seus 7 amores e nos envolve em estórias engraçadas e apaixonantes.

Espero que esses seus amores oníricos tenham a oportunidade de ler essa carta.
Grande beijo.
Gabriel França disse…
Um belo texto, meu irmão. Gosto muito dessa sua maneira de escrever, trazendo o mundo imaginário para o mundo real. Os sonhos pregam mesmo algumas peças em nós. Também tenho meus amores oníricos, mas eles raramente me visitam no íntimo do meu inconciente.
Um grande abraço, velho. A carta ficou show!
Anônimo disse…
"AMORES ONÍRICOS" parece coisa de adolescente, mas você conseguiu demonstrar maturidade através de seu belo texto. Ficcionalmente, texto admirável. In loco, texto perigoso, principalmente se as dreamgirls resolverem aparecer!

Gostei do texto! Até mais!
Jaquee. disse…
Sem palavras...
Muito bom mesmO!
Estou esperandoo a história continuar o capítulo 4.


BeijOs!!!
Unknown disse…
Este comentário foi removido pelo autor.

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