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CAPÍTULO III

“Gosto-te tanto que, se um dia eu te perder na dor do desencanto, silenciarei meu canto e não saberei mais viver”, era o que dizia, durante a madrugada, a primeira mensagem de texto que Ana Júlia recebeu em seu primeiro telefone celular. A menina não precisou correr ao encontro do aparelho: ele vibrara uma única vez sobre a cama, ao seu lado, despertando-a de prontidão. Ana, surpresa, suspirou, e não fez cerimônia para ler o pequeno conteúdo. Aquele era sem dúvidas o seu melhor presente de aniversário, mas ela não imaginava que o seu melhor brinquedo tão logo pudesse sinalizar ao seu coração com tamanha voracidade.

Horas mais cedo, o aparelho fora a grande atração para Júlia e para as suas amigas da escola. A maioria das meninas já dispunha de telefones móveis. E eram apenas Júlia e Silvia, a sua melhor amiga, as que ainda não possuíam um. Silvinha ficou sozinha nesse time: ontem fora a vez de Júlia estrear o seu. Agora Júlia poderia entender melhor as fofocas iniciadas nas noites que antecediam os encontros matinais no pátio do colégio - ela ficava sempre “voando”, como costumava dizer, antes de se retirar solitária para a sala de aula.

Tímida, Júlia, entre um sorriso e outro, era uma menina contagiante. Recusava alguns elogios exagerados às funções mais avançadas do seu telefone portátil e insistia em dizer, com forte entonação na voz, que aquele era um presente do seu pai. Mas ela passara mesmo aulas inteiras a mostrar os jogos, as fotos e os tons musicais que já constavam da memória do aparelho, inadvertidamente desatenta aos olhares curiosos dos garotos mais espevitados de sua turma.

O dono de um dos olhares, entretanto, assistia à cena com total discrição, dividindo a sua atenção com um exercício de matemática, que àquela altura já não podia mais ser respondido sem incorreções, uma vez que o menino pusera sinal de “menos” onde deveria ser “positivo”, quando - sem querer – o seu olhar cruzara o de Júlia. O menino se envergonhara e, sem disfarce, baixara o olhar.

Esfregava a borracha por onde não havia nada escrito, despercebendo-se do erro que houvera cometido. Tentava, em vão, encontrar o “x” que o enunciado exigia. Encontrou “menos quatro”, como resultado. Olhou as opções no livro e percebeu que, da letra “a” à letra “e”, não existia uma mínima similaridade sequer com o resultado obtido. Resolveu reagir, então. Não à expressão numérica; à oportunidade que se apresentava para que o seu coração se manifestasse, sem precisar, entretanto, expor a sua timidez:

- Ei, Bolha. Preciso do número dela, cara – falou baixinho ao seu amigo de infância, após ter retomado a coragem e ter se reerguido sobre a cadeira.

- Que número? De quem? – perguntou bolha, após ter cravado, convicto, um “x” sobre a letra “c” do mesmo exercício que o seu amigo malograra, cujo resultado não poderia ser outro senão dezesseis.

- Da Júlia – o menino disse, baixando o rosto pesado pela vergonha.

Bolha levantou-se e, como um bom amigo, iniciou alguns passos lânguidos ante o olhar de repreensão da professora de Matemática, uma senhora aposentada que dizia, do alto dos seus 68 anos, que “ensinar matemática era a sua maior paixão” e que não aceitava qualquer movimentação sem o seu consentimento. O menino fingiu espirrar por três vezes e prosseguiu a caminhada, convivendo agora com o silêncio fúnebre instalado na sala e com os olhares lançados contra o seu vulto.

- É o ar-condicionado, professora. Preciso me sentar mais à frente – justificou-se Bolha, com o ar de brilhantismo de protagonista de cinema, e prosseguiu com os seus passos, triunfante, sentando-se em seguida ao lado de “jubis”, como ele costumava chamar a doce Ana Júlia.

A execução da tarefa não fora nada difícil para Bolha, dada a sua facilidade para se enturmar com meninas. E o dia na escola terminara ao meio dia, sob os lúdicos ensinamentos de um jovem professor de história, que não se importava com a empolgação do menino sentado na última cadeira à direita. O menino tinha o rosto iluminado pelo reflexo do brilho dos seus olhos incidente sobre o caderno. Quando o sino tocara, o menino brincava. Brincava com números. Os números do telefone celular de Júlia.

Comentários

Jaqueline disse…
Rafael. Quando li logo percebi que era vc qm continuava a história. Estou empolgada com ela!

Quando começo um livro, termino no mesmo dia. Então peço,melhor imploro que não me torturem com esses capítulos que tanto demoram...
AMEEEEEI o capítulo III


Mais uma vez... PARABÉNS!!!


Beijo!
Gabriel França disse…
Vixee. Jaque ta empolgada mesmo com o livro. rsrsrs... Também não é pra menos, quando se juntam duas mentes brilhantes, como Rafael e Tiago, não pode sair nada ruim, os caras são feras mesmo, e o Capítulo 3 desse projeto prova isso.
Um grande abraço!
Anônimo disse…
Estou gostando do ritmo do Intitulável! Bastou Rafael e Gabriel voltarem a escrever, para o blog agitar e aumentarem o número dos comentários nos textos. Até Jaque que andava sumida reapareceu. Rafael, vc vai ficar com o capítulo 4??? Vamos tentar levar adiante esta história até ver no que vai dar.

ABRAÇOS A TODOS

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