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Obrigado, duque de espadas

"Eliana, traga 'pespi' aí pra mim", é assim, trocando hilariamente as letras da Pepsi e com o seu jeito descontraído, que o meu pai grita por um copo de refrigerante, da varanda de casa, enquanto, na companhia habitual de três amigos, passa tardes e noites inteiras a jogar buraco. A minha mãe não demora a trazer o agrado que ele, após um primeiro gole, repousa com cuidado sobre o chão, à sua direita. E as partidas seguem sempre alegres, exceto por umas e por outras reclamações do meu velho, que mais parecem reprimendas daqueles professores mais antigos do colegial, quando um ou outro parceiro, para ele, comete um grave vacilo.
"Essa aula é dia de terça", ele sempre conclui, misturando a seriedade com um tom de brincadeira, após dizer que "ás" não se cola, por exemplo, ou que não se deve colar duas cartas num jogo sem antes aguardar a manifestação (nem sempre exata) de que o parceiro não a possui, quando, é claro, a sua cópia ainda não deu as caras pelo bagaço ou pelos jogos já arriados sobre a mesa. Meu pai costuma dar aulas de baralho, e esta condição, a de professor, ele mesmo confirma, batendo urfante sobre o peito. E é verdade. Só não aprende com o meu velho quem não quer.
Conquistei, ainda na adolescência - talvez aos 16, se me lembro bem -, o direito de me sentar ao seu lado na mesa do jogo, primeiramente como um fraco e observador adversário. Meu pai geralmente encontrava-se à minha esquerda, na minha marcação, e à frente de Serginho ou de Uiltemberg, seus parceiros e amigos da vida que também são entendidos da jogatina. À minha frente, como meu parceiro, para a minha sorte, tinha sempre alguém, como Marcelo ou Biel, que pegava mais bagaço do que eu: como quem tenazmente procurava algo miticamente escondido, eu só pensava mesmo era em cavar.
Cavava sempre em busca da minha batida, quando um desprevenido adversário não me proporcionava o dissabor de vê-lo surpreso ao "cair duro" na mesa. Mas era somente lá, no cava, que vez por outra eu achava um duque de espadas, a carta que me atraíra, que me convidara para o jogo e que, eu penso, é a peça mais melindrosa do naipe mais imponente do baralho. Dava gosto cavar um duque de espadas e de camuflá-lo em seguida por entre inexpressivos ases e ternos de colorações diversas, embora, pare efeitos práticos, ele, o duque, não tivesse maior valoração que os seus equivalentes de outros naipes.
Gosto do duque de espadas, explico, porque, ainda menino, com o olhar sempre contemplativo, do lado de fora da mesa, eu já achava fantástico - e enigmático - o modo como aquela carta negra enfiava-se por entre as vermelhas, com a autoridade que, não me perguntem por que, os duques de copas e de ouros não conseguiam imprimir quando sujavam os jogos de paus e de espadas.
As mesas de baralho, entretanto, transmitem para mim valores muito maiores do que os aguçamentos para cálculos matemáticos e para o exercício saudável da memória que me são constantemente proporcionados. Sentei-me com alguns velhos e jovens jogadores e fui ouvinte de grandes lições e de grandes causos, como os contados com graça por pop, o meu adorável avô materno, para quem o "valete" tem denominação amistosa de "Valentim Cesário" e a "dama" lhe é tida como uma senhora conhecida, que imagino contemporânea sua, aquela a quem ele chama com formal intimidade de "Damiana Maria da Luz", sempre que esta é "cuspida" sobre a mesa e que lhe é interessante realizar o seu acolhimento.
Os encontros dos amigos do baralho, por esses tempos de entrega aos trabalhos e aos estudos, têm se tornado quase sazonais. Mas, para aqueles que não se sentem atraídos pelos festejos juninos e que podem emprestar apenas um dos olhos à insípida Copa do Mundo, a mesa será como que um convite irrecusável. E, enquanto as mãos ligeiras embaralharem as cartas, um certo duque correrá ainda mais veloz, brincando acintosamente de se esconder.


RF

Comentários

JOCIMAR FRANÇA disse…
Um duque é sempre um duque!!!! Agora percebo que pode ser também um 'truque' para os olhos atentos de quem vê além dos naipes.

Ler suas postagens, ainda que tratando de uma aparente simples mesa de baralho, me proporciona um enorme bem estar. Parabéns meu querido sobrinho.
Anônimo disse…
Vi de perto um pouco dessa história... confesso que não fui bom aluno e aprendi pouco com o mestre do 'buraco' ou 'canastra', como alguns chamam. A crônica está execelente...foi uma leitura agradável...

Abraços,

Tiago França
Anônimo disse…
O prazer proporcionado por essa pérola deliciosa, se assemelha à satisfação de tornar público, que,o aluno escritor foi tão competente quanto o Rafa observador da mesa de baralho, pois,certamente daria grandes aulas de como bater um jôgo, mesmo que a batida seja sem o valoroso DUQUE DE ESPADAS !
Parabéns filho !

Aldo
Anônimo disse…
Belíssima homenagem, gostei muito.Ótimo ver que ainda existem relações tão firmes e sinceras quanto esta. Parabéns pelo texto!

Até.
Gabriel França disse…
Tão importante quanto o duque de espadas para o jogo, é a convivência e o aprendizado adquiridos nesses belos dias de jogos de buraco.
Um belo texto.
Abraço.
Quéren disse…
Como de "buraco" sou leiga, vou falar da agradavel sensação em ler seu texto. Continue assim.

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