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Fim das intermitências - José Saramago se foi!




Eu descobri Saramago quando tinha 14 anos. Estava no 2º ano do Ensino Médio e precisei fazer um trabalho de Literatura sobre ele. Então, após a pesquisa, conheci um pouco da biografia e do sucesso daquele escritor ainda em atividade. Como bom leitor, cacei-o na biblioteca da escola e encontrei "Ensaio Sobre a Cegueira". Fiquei deslumbrado! Me apaixonei pelo livro e criei afeição pelo autor. Li então "Levantado do Chão" e "Memorial do Convento", o que deu o Nobel a Saramago. O que li primeiro me agradou mais, entretanto, continuei minha busca por conhecer o universo literário de Saramago. Li "A Caverna", "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", "O Homem Duplicado", "A Jangada de pedra" e "As Intermitências da Morte". Sempre achei os livros dele muito caros, mas sempre eram os melhores. Assim como o imortal Machado de Assis, Saramago nasceu numa região pobre, passou dificuldades, foi autodidata, foi funcionário público e tornou-se um gênio da literatura mundial. Só começou a ter sucesso como escritor já na vida adulta. Conquistou o mundo com suas histórias incríveis, recheadas de implicações filosóficas. Saramago tinha um estilo próprio e inusitado de escrever. Não gostava dos pontos, preferia as vírgulas, inseria os diálogos no meio dos parágrafos, fazia uma narrativa contínua, utilizando enormes períodos. Seus livros transbordam conhecimento histórico, filosófico, sociológico e cultural. Ele era um erudito da língua portuguesa. E era ranzinza também, pois não permitia que seus livros fossem traduzidos para o português 'brasileiro' e assim tive de me habituar a língua usada em portugal. As leituras sempre foram frenéticas e vorazes. Todo livro de Saramago sempre tinha algo novo a acrescentar e sempre obrigava o leitor a fazer uma viagem inusitada. Recentemente, rendeu-se a internet e começou a escrever num blog. Não se adaptou. Por este meio de comunicação, hoje, soube da desventura deste gênio. "Hoje, sexta-feira, 18 de Junho, José Saramago faleceu às 12:30 horas na sua residência de Lanzarote, aos 87 anos de idade, em consequência de uma múltipla falha orgânica, após uma prolongada doença. O escritor morreu estando acompanhado pela sua família, despedindo-se de uma forma serena e tranquila." Essa foi a nota da Fundação José Saramago no site(sítio, como ele escreveria) do escritor. Acabou a intermitência, ela chegou. Fim da vida de um grande homem. Ele era controvertido, ateu, comunista, rival das instituições e da moral moderna. Sempre o vi como um conservador radical; apenas ele podia ter características tão antitéticas. Para mim, as homenagens devem, sempre que possível, serem feitas em vida. Planejei fazer isso aqui, mas o tempo foi cruel. Canto loas aqui a José Saramago, pela revolução literária que operou na humanidade e pelo crescimento cultural que ele proporcionou a mim.

Para relembrar, frases do mestre:

"Nada há que seja verdadeiramente livre nem suficientemente democrático. Não tenhamos ilusões, a internet não veio para salvar o mundo."

"Se eu pudesse repetir minha infância, a repetiria exatamente como foi, com a pobreza, com o frio, pouca comida, com as moscas e os porcos, tudo aquilo."

"A globalização é um totalitarismo. Totalitarismo que não precisa nem de camisas verdes, nem castanhas, nem suásticas. São os ricos que governam e os pobres vivem como podem."

"Não consigo temer a morte".

"Lula está de pés e mãos atados e parece que não vai mais conseguir fazer as grandes medidas que prometeu no plano social. Foi uma decepção para o mundo."

"Agora vivemos o império do petróleo e do dinheiro - o resto é disfarce."

"Não sou pessimista. O mundo é que é péssimo."

"Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo."

"Não sou um ateu total, todos os dias tento encontrar um sinal de Deus, mas infelizmente não o encontro."

"Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro para uns e será o último para outros e que, para a maioria, é so um dia mais."

"Em vez de ouvirem os escritores em busca de respostas sobre o que somos, as pessoas precisam ouvir umas às outras, porque nós, autores, não somos mais do que meros trabalhadores da palavra."

Comentários

Gildson Souza disse…
Simplesmente fantástico! A única coisa que tenho a fazer é concordar com o diretor Fernando Meirelles:"o mundo ficou mais burro e mais cego".
Abraços
Marcos disse…
Ótimo relato, Tiago.

Gostei muito das frases do "Cara" que vc selecionou. Bem pertinentes.

Abração, cara
JOCIMAR FRANÇA disse…
O bom é ter num resumo perfeito a vida destacada deste escritor. Passo a admirá-lo depois de conhecer sua citação sobre Lula.

Parabéns Tiguinho.
Rafael França disse…
Ainda não conheço uma obra sequer de Saramago. Mas você já havia me contado sobre o brilhantismo desse mestre que acaba de fazer a passagem para o passado, parceiro. Valeu pelo texto carregado de informações. Tenho agora mais vontade de conhecer a sua escrita. E que ele descanse em paz.

RF
Anônimo disse…
Saramago ainda é para poucos. A grande das maiorias das pessoas que está lamentando sua morte sequer o leu. É uma pena. Sempre irreverente, ele criou muito problema por ser ateu e comunista. Mas sua convicção de não-fé nunca me abalou e nem me desrespeitou. Sua visão do homem e do mundo é muito aguçada. Para quem quer conhecer o mundo, viver a literatura, saborear erudição, viajar em histórias, a leitura de Saramago é obrigatória!

E quem quer criticá-lo, tem direito! Mas deve lê-lo primeiro, para depois se pronunciar.

Abraços a todos,

TIAGO FRANÇA
Gabriel França disse…
Sempre ouvi falar em José Saramago, mas nunca tive a disposição de pegar um livro seu para ler. Talvez pelo seu português de Portugal transcrito nos livros, ou por não ter recebido nenhuma indicação de alguém próximo. Se Tiago fez essa homenagem é porque ele deve merecer mesmo. Não podemos mais acompanhá-lo em vida, mas a literatura tem essa força, imortaliza seus gênios, deixando sua obra se eternizar.

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