Eric Carmem sobreviverá - não me perguntem como. Sei apenas que a sua voz permanecerá tocando os corações: será com “all by myself” que Charlize Theron me esperará em seu camarim, quando as gravações do seu primeiro longa filmado no Brasil derem uma pausa, em 2017. Nós teríamos marcado uma entrevista, há dois meses. Nós, do The New York Times, digo.
Como enviado especial, eu seria mandado de volta à minha terra. O Brasil conseguiria, enfim, tornar-se uma potência econômica. Entraria para o seleto time do primeiro mundo. Do lado de fora, os carros poderiam ser vistos pelas janelas, voando velozes a qualquer destino. A fumaça e o CO2, graças às novas tecnologias, já não mais poluiriam o planeta. A onda verde venceria. O mundo tornar-se-ia sustentável. Para resumir: o mundo estará bem, eu estarei engravatado, galante, e Charlize Theron, ah, Charlize continuará linda.
A cena parecerá clássica ao leitor. E poderá lhe sobrar a sensação de que o cinema já a reproduzira antes. Mas eu vou apresentá-la:
- Mrs. Tcheron, Mr. France, the journalist, is here – anunciará o elegante assessor de Charlize, cedendo-me passagem.
Charlize sorrirá para o seu assistente, que fechará a porta do camarim e deixar-me-á sozinho com aquela estrela. Gentilmente, ela estender-me-á o braço e dirá, com seu inglês sutil:
- Please, sit, Mr. France.
- França. Rafael França – eu direi, com ar de gente importante, forçando-a a falar o meu nome em português.
Charlize, que já será como que a Meryl Streep do cinema de então, não disfarçará a velhice que as rugas denunciarão e fará pouco caso da minha observação.
- New York T...? – com o olhar cansado, ela ensaiará perguntar, mas será logo interrompida pela minha resposta transcrita na linha de baixo.
- Yes. Why... (...)? – responderei com firmeza e emendarei uma pergunta sobre o filme e sobre a sua carreira, nada que a rotina jornalística já não conheça.
A loura Sul-africana seguirá respondendo às minhas perguntas e, à medida que as faço, o seu rosto seguirá redesenhando-se em feições mais amenas, e os seus lábios, inquietos, já revelarão a sua angústia. Charlize buscará alguma coisa no criado-mudo ao lado de sua cadeira. Eu lhe perguntarei o que é.
- The control remote – ela dirá, desviando o olhar.
Charlize parecerá inquieta, agitada. Encontrará um objeto minúsculo e o elevará à altura da testa, como quem dá um comando mental. O acessório me parecerá a maior das novidades tecnológicas, embora eu já andasse conhecendo muitas outras coisas por entre a América que fica na parte de cima do globo. Tentarei entender a sua função. Até que uma música, ao fundo, retomará os ares. Será Eric Carmem, que há muito houvera se calado, mais uma vez. Charlize, meu amor, o traria de volta.
Theron erguer-se-á da cadeira, frente à minha perplexidade. E Doce Novembro, sucesso do longínquo ano de 2001, começará a ser reeditado na memória. Serei eu, então, o Keanu Reeves de Charlize. “Ela ainda conserva a mesma beleza de outrora”, eu pensarei, chamando-a de eterna gostosa com outras palavras. “Valeu à pena ter aulas de teorias do jornalismo. Valeu à pena entender por que as notícias são como são. Valeu à pena compreender Marx, Adorno e Gramsci. Eles eram os caras. Eles me tornaram um ótimo jornalista, um ótimo profissional”, vangloriar-me-ei. “Olha só onde eu estou agora”.
- Do you want to dance with me? – ela perguntará.
Tentarei dizer “yes”, em vão.
- Yes – em algum lugar do pensamento, eu consigo dizer.
- Yes – insisto, já no escuro.
- Yeeees – a leitura desta última fala deve ser também ouvida por você, leitor, como aquela voz que vai falhando lentamente com efeito devastador, e que, confesso, é por vezes assustadora nos programas de tevê.
No final, não há dança. E sobra-me, como sempre, o último parágrafo da crônica, que é como que o meu parceiro inseparável, o meu amigo consolador, para terminar a história. Findá-la é uma triste obrigação. O sorriso e a elegância de Charlize, distantes, permanecem, com muita dificuldade, imóveis na retina. Eric Carmem, no Winamp, às gargalhadas, continua a cantar; ele não cessou na caixa de som do PC. Deve ter tocado umas dez vezes. Dez vezes, para o arquivo mp3 que tenho de “all by myself”, é o equivalente a quarenta e cinco minutos. Este deve ser o tempo de duração de uma entrevista. Deve ser quanto dura uma viagem, com posteriores volta e amargura, pelo futuro.
RF
Como enviado especial, eu seria mandado de volta à minha terra. O Brasil conseguiria, enfim, tornar-se uma potência econômica. Entraria para o seleto time do primeiro mundo. Do lado de fora, os carros poderiam ser vistos pelas janelas, voando velozes a qualquer destino. A fumaça e o CO2, graças às novas tecnologias, já não mais poluiriam o planeta. A onda verde venceria. O mundo tornar-se-ia sustentável. Para resumir: o mundo estará bem, eu estarei engravatado, galante, e Charlize Theron, ah, Charlize continuará linda.
A cena parecerá clássica ao leitor. E poderá lhe sobrar a sensação de que o cinema já a reproduzira antes. Mas eu vou apresentá-la:
- Mrs. Tcheron, Mr. France, the journalist, is here – anunciará o elegante assessor de Charlize, cedendo-me passagem.
Charlize sorrirá para o seu assistente, que fechará a porta do camarim e deixar-me-á sozinho com aquela estrela. Gentilmente, ela estender-me-á o braço e dirá, com seu inglês sutil:
- Please, sit, Mr. France.
- França. Rafael França – eu direi, com ar de gente importante, forçando-a a falar o meu nome em português.
Charlize, que já será como que a Meryl Streep do cinema de então, não disfarçará a velhice que as rugas denunciarão e fará pouco caso da minha observação.
- New York T...? – com o olhar cansado, ela ensaiará perguntar, mas será logo interrompida pela minha resposta transcrita na linha de baixo.
- Yes. Why... (...)? – responderei com firmeza e emendarei uma pergunta sobre o filme e sobre a sua carreira, nada que a rotina jornalística já não conheça.
A loura Sul-africana seguirá respondendo às minhas perguntas e, à medida que as faço, o seu rosto seguirá redesenhando-se em feições mais amenas, e os seus lábios, inquietos, já revelarão a sua angústia. Charlize buscará alguma coisa no criado-mudo ao lado de sua cadeira. Eu lhe perguntarei o que é.
- The control remote – ela dirá, desviando o olhar.
Charlize parecerá inquieta, agitada. Encontrará um objeto minúsculo e o elevará à altura da testa, como quem dá um comando mental. O acessório me parecerá a maior das novidades tecnológicas, embora eu já andasse conhecendo muitas outras coisas por entre a América que fica na parte de cima do globo. Tentarei entender a sua função. Até que uma música, ao fundo, retomará os ares. Será Eric Carmem, que há muito houvera se calado, mais uma vez. Charlize, meu amor, o traria de volta.
Theron erguer-se-á da cadeira, frente à minha perplexidade. E Doce Novembro, sucesso do longínquo ano de 2001, começará a ser reeditado na memória. Serei eu, então, o Keanu Reeves de Charlize. “Ela ainda conserva a mesma beleza de outrora”, eu pensarei, chamando-a de eterna gostosa com outras palavras. “Valeu à pena ter aulas de teorias do jornalismo. Valeu à pena entender por que as notícias são como são. Valeu à pena compreender Marx, Adorno e Gramsci. Eles eram os caras. Eles me tornaram um ótimo jornalista, um ótimo profissional”, vangloriar-me-ei. “Olha só onde eu estou agora”.
- Do you want to dance with me? – ela perguntará.
Tentarei dizer “yes”, em vão.
- Yes – em algum lugar do pensamento, eu consigo dizer.
- Yes – insisto, já no escuro.
- Yeeees – a leitura desta última fala deve ser também ouvida por você, leitor, como aquela voz que vai falhando lentamente com efeito devastador, e que, confesso, é por vezes assustadora nos programas de tevê.
No final, não há dança. E sobra-me, como sempre, o último parágrafo da crônica, que é como que o meu parceiro inseparável, o meu amigo consolador, para terminar a história. Findá-la é uma triste obrigação. O sorriso e a elegância de Charlize, distantes, permanecem, com muita dificuldade, imóveis na retina. Eric Carmem, no Winamp, às gargalhadas, continua a cantar; ele não cessou na caixa de som do PC. Deve ter tocado umas dez vezes. Dez vezes, para o arquivo mp3 que tenho de “all by myself”, é o equivalente a quarenta e cinco minutos. Este deve ser o tempo de duração de uma entrevista. Deve ser quanto dura uma viagem, com posteriores volta e amargura, pelo futuro.
RF
Comentários
Um abraço
Volte a escrever, rapaz, você é bom nisso.
Um abraço!