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Página branca

Dentre os meus medos mais secretos, toca-me sempre o peito a página branca, que, um pouco antes de nascer este texto, voraz, aguardava mais uma vez pelo derramar das minhas palavras mais insólitas. É ela quem, em sua imensidão e profundidade, convida-me sempre para mais uma conversa uníssona, escondendo em seu silêncio cada vocábulo que o “backspace”, a cada toque no teclado, impede que seja publicado. Imagino-a absorta em seu mundo, cuja aura abriga os grandes poetas e os mais renomados escritores, aqueles a quem, vai saber, certamente submeto a minha gramática e ponho sob avaliação a minha cultura. Mas, confesso, temo mais à página branca por ser ela a ouvinte e a detentora dos meus segredos.
Durante o percurso, uma ligação. A madrugada, então, se junta à minha confidente naquilo que parece ser uma dança do silêncio e presta-se a ouvir a conversa, convidando-me a mudar o enredo deste escrito, uma vez que os olhos já não escondem a tristeza e a seriedade dos lábios já prenunciam o nascimento de mais um texto carregado de emoção. A voz, feminina e delicada, soa familiar ao coração, e a memória, que mais uma vez não me abandona, torna-me novamente um arqueólogo da minha própria vida. Dentro dos cenários desenhados por lembranças e espasmos sinestésicos, os estalos logo roubam o silêncio e os beijos logo ganham a escuridão, dando novas formas aos ares do quarto, que já se preparava para o iminente retorno do sol.
A ligação estende-se madrugada adentro. Entre farpas e declarações de amor, a conversa segue arrastando-se lentamente. Surge um velho amigo recém chegado de uma festa - um aviso do MSN anuncia as suas primeiras palavras. Em planos distintos, vejo-me agora envolto em duas conversas, com três interlocutores e dois ouvintes intrusos. Nesta equação, um mistério repentino: o elemento a quem outrora eu receava passa a encantar-me com sua magia. Eis que ele embaralha as palavras do texto, cria novas combinações e ensina-me sobre coisas antes jamais imaginadas. Sigo passivamente a contemplar esta exibição e torno-me um leitor complacente, até que ela, a página branca, seduzindo-me, passa a desfiar com maestria cada pedaço da minha vida.
As vozes despedem-se ao telefone. O amigo dos bons tempos de escola, cansado que está, retira-se para dormir. Do lado de fora, a cidade, amanhecendo, começa a expulsar o silêncio, que segue triste o seu destino. E eu sigo aprendendo, adiantando-me a pensar em como foi longa a madrugada e em como fazer para, como bem faz a minha página branca, manter comigo os segredos que ela me contara sobre a sua vida. Sobre a vida.
RF

Comentários

Anônimo disse…
OBA! Texto novo! Estava ansiando por isso. E mais uma vez a METALINGUAGEM! Ela nos persegue, não é parceiro? Hoje em dia essa página não é tão branca, pois ao redor dela tem inúmeros ícones. Mas a dificuldade de arruamr as palavras e formar um texto continua a mesma. Mas o verdadeiro escritor não desiste, ele tenta, digita, corrige, apaga, até conseguir o seu objetivo. Um trbalho laborioso, mas muito gratificante.

Quero ver mais textos seus em 2010.

UM ABRAÇÃO
Anônimo disse…
Interessantíssimo!
É pura verdade que a página branca admite a forma desafiadora e sedutora, mesmo com sua aparente inexpressividade.

Até!
Gabriel França disse…
Encarar a página branca, seja ela o Word ou uma simples folha de papel, e pôr nela emoções é, por vezes, complicado. O desafio de transformar o nada em um texto é uma atividade bem interessante para uma mente criativa. O ato de escrever e apagar, a cada nova ideia, confidencia à página branca informações que o leitor jamais saberá. Tal fato a torna interessante.
Um bom texto do meu irmão!
Um abraço!
Quéren disse…
Há tanta coisa pra ser escrita e por muitas vezes a página permanece em branco.E qual será a receita para um bom texto?
Basta o despertar da coragem, a criatividade,caneta na mão,e, como tempero especial, o gostar do que se faz.
E estará sempre lá, os melhores textos do Intitulável.
Aldo França disse…
A página só é branca nos momentos em que a mente relaxa em sua forma poderosa de deixar o escritor preso,apenas, nas palavras a serem criadas, escritas...
Esse momento, representado por um "hiato" entre a criação e a consciêcia de suas verdades pequeninas, pode ser melhor utilizado se vc entender mais rapidamente que a vida não pára e em consequência, que somos pedaços de pedacinhos despedaçados, razão e autores de todos os conflitos que o gera.
Você está trilhando um caminho tão promissor filho que até as "páginas brancas" nos encherão de orgulho e prazer...

Beijo.

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