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Estórias inacabadas

Na mais recente madrugada de um mundo inventado, Martinho ainda não deve ter ido dormir. Mas não acredito que ele permaneça acordado por não sentir sono ou por estar simplesmente ansioso por receber o tão sonhado violão que o seu pai, Francisco Gonzaga, lhe prometera no capítulo anterior que falava da última noite, ao deixá-lo em seu quarto, deitado sobre a cama. Acredito, sim, que ele permaneça com os olhos abertos, sob o cobertor, esperançoso de que eu - depois de duas semanas sem abrir o arquivo de texto em que ele habita - retorne para criar novos parágrafos e continue a inventar a sua existência.

Martinho, exatamente como a jovem Mariazinha, a Dona Elisete e o Sr. Mercedes – outros personagens que criei em outras estórias, presos também em outros arquivos de textos – é uma vítima da minha indisposição em finalizar contos, sob o calor de cada noite, frente ao computador. Entendo perfeitamente se este garoto de quinze anos, que fiz nascer no sertão da Bahia, xingar-me por completo e esbravejar contra a minha injustiça – denunciada por seus olhos marejados -, já que gastei dois grandiosos parágrafos para falar sobre a exploração sofrida por sua família e, por mera preguiça, não permiti que um próximo dia amanhecesse e os primeiros acordes de um violão lhe conquistassem um primeiro sorriso.

Lembrando-me agora da tristeza que também habita os olhos de meninos pobres do nosso mundo real e cruel, resolvi finalizar este conto, na noite próxima, que já se aproxima. Mas farei diferente das matérias de jornais – que apenas mostram a miséria alheia e negam auxílio – e irei, eu mesmo, aparecer neste conto, carregando o seu violão a tiracolo e fingindo uma negociação barata com o sofrido Sr. Francisco. Quem sabe, assim, eu possa ver o sorriso do menino.

Uma das moças mais belas do verão de 1970 e filha de um influente coronel da época, a menina Mariazinha, que embora seja rica e muito cortejada pelos rapazes de sua idade, aguarda esperançosa em minhas próximas palavras a consumação do seu maior sonho: sentir o sabor de um primeiro beijo. Deixei-a ouvinte da última frase de Betinho, na escadaria de sua residência:

- Deixe-me dar-lhe um beijo, meu bem. Você não encontrará prova mais segura de que este amor existe – disse o menino galanteador.

A menina ouviu, suspirou, lembrou-se dos movimentos que treinara num copo com gelos e deu um passo, segura de sua decisão. Mas, no “X” que encontrei ao alto da tela, dei um comando para apagar a luz. Fechei, salvei o documento e deixei os dois no escuro.

Opa. Para tudo. No escuro? Calma. Calma, pessoal. Não nos precipitemos em imaginar a ousadia dos meninos. Fui cauteloso na escolha do tempo desta estória: embora acredite que os jovens daquela época já fossem naturalmente espertos, sei melhor que, se estes dois personagens fossem meus contemporâneos, não haveria o menor respeito pela ordem literária e eles me tomariam pela mão e forçar-me-iam a descrever um envolvimento precoce, já que entendem tanto sobre o mundo virtual e entendem ainda mais sobre ousadias, que aprendem em letras de pagode, em programas de televisão e, inevitavelmente, nas escolas. Por isso, então, escolhi a década de setenta. Nela, estes jovens vivem no tempo em que a autoridade militar estende o medo da repressão às regras e aos costumes familiares.

Voltando à minha dívida com a menina, quero dizer que lamento por Mariazinha, mas é que eu, na verdade, não gostava muito desse Betinho aí. Vocês não sabiam e nem Mariazinha, mas eu usei cinco linhas para descrever a má índole do rapaz, num dos parágrafos iniciais do conto. Sei da tristeza dela e, principalmente por isso, eu abandonei este texto ligeiramente comovido e com uma promessa de um dia voltar para garantir-lhe um desfecho melhor.

Somente um sagaz em recuperação de arquivos é capaz de trazer Dona Elisete e o Sr. Mercedes de volta, uma vez que os lancei diretamente para o esquecimento, sem dar-lhes, sequer, o direito a visitar a lixeira de meu computador. É que estes dois ajudaram a compor o mais triste dos meus projetos de contos.
Eles tinham vinte anos de casados, quando o velho Mercedes – doze anos mais velho que a ainda bem conservada Dona Elisete – entrou sem aviso pela porta e flagrou a sua esposa com outro, o Ricardo Zepelé. Preso à batida acelerada dos dedos nos teclados, não consegui furtar do Sr. Mercedes a idéia que ele tinha de sacar o seu revólver, escondido sob os seus pertences de ex-militar, numa gaveta de um armário. O ódio do velho era auto-suficiente. Perdi o controle sobre os seus sentimentos. Desisti da escrita imediatamente. Com esforço, lutei contra o peso do mouse e consegui fechar o arquivo. Em seguida, cliquei sobre ele e apertei SHIFT + DELETE. Confirmei e, com esse gesto, joguei fora uma ameaça concreta de um assassinato. Coisa que quase nunca podemos fazer na vida real.
RF

Comentários

Anônimo disse…
Parabéns, parceiro. Tava sentindo falta de seus textos. E nesse, a metalinguagem foi fenomenal. No momento em que as palavras nos fogem, o ideal é realmente escrever sobre a fuga das palavras. Eu também tenho inúmeras histórias inacabadas, contos apenas iniciados, poemas apenas pesados. Talvez um dia estas ideias soltas possam vir para aqui no Intitulável. Controlar uma história, seu roteiro e seus personagens, não é uma tarefa fácil. Talvez Chico Buarque tenha exagerado quando disse que escrever é uma chatice. Escrever é árduo e laborioso, mas é gratificante ver o fruto do trabalho.

Um forte abraço,

Tiago França
Jaqueline disse…
Uau! eu não sei se farei justiça ao que realmente merece ouvir mas... esse testo em particular está MARAVILHOSO. não somente pela forma que você escolheu fazê-lo mas, como decidiu "terminar" os seus contos...
Seus textos são sempre muito bons. Eu acredito "conhecer" um futuro 'maior nome' da nossa história.
Penso que os melhores textos do Intitulável são: Amor de adolescente; O ato de escrever 50 texto do Intitulável, O silêncio de Duprat, Menina de Ouro e... esse já está na minha lista é claro...
Um beijão para tds vc's do Intitulável!
e...Parabéns pelo ótimo texto.
jaqueline disse…
texto*
Gabriel França disse…
Meu irmão tem uma forma bastante interessante e singular de escrever. Seus textos atraem o leitor de tal forma, que os mesmos sentem-se aprisionados. Presos, mas no bom sentido. Uma prisão boa, onde não há a mínima vontade de que se finde o texto. A jogada de se envolver com a história, conhecer os personagens, torná-los 'reais', é simplesmente incrível, e você consegue fazer isso com maestria, velho.
Todos nós que escrevemos temos histórias/estórias inacabadas. Textos, contos, poesias, sonetos, dentre outros. Eu fazia isso frequentemente, e confesso que, essas histórias incompletas aguçam ainda mais a criatividade do escritor em dar um novo rumo ao que, anteriormente havia pensado de uma forma, ou imaginado de outro jeito.

Valeu, Rafa, ficou massa!

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