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NO ÔNIBUS

Sempre quis escrever uma crônica ou um conto sobre uma situação, vivenciada ou inventada, num ônibus. Esta forma de transporte coletivo tão habitual nas grandes cidades sempre foi minha companheira desde os meus oito anos, quando comecei a estudar longe de casa. Vivi muita coisa dentro de um ônibus. Vi. Ouvi. Aprendi. Suportei. Sempre foi um verdadeiro teste. Horário não havia. O tempo de espera nos pontos era sempre insuportável. Nos horários de pique os ônibus estavam sempre lotados. Algumas vezes, superlotados. Lembro a vez que voltei para casa dependurado na porta traseira. Fortes emoções. Adrenalina. Ou será que era tudo uma grande loucura?

Obviamente, utilizar habitualmente o péssimo transporte coletivo não é da vontade de ninguém. Devido à precariedade do serviço prestado, todos anseiam uma forma distinta de locomoção. Mas, infelizmente, a realidade financeira é sempre um fator preponderante e o ônibus continua sendo a melhor saída. De maneira proporcional, os desempregados do meu Brasil varonil não têm outra saída a não ser tornarem-se ambulantes. E a minha crônica só vai sair dessa vez justamente graças a um vendedor. Vamos seguir a história.

Estava indo para faculdade. A linha era Paripe-Rodoviária. O meu destino era a Rótula do Abacaxi, para lá tomar outro ônibus rumo a minha universidade. O horário de meio dia era propício e eu estava sentado na janela fazendo o que mais gostava de fazer em um ônibus: lendo. O calor estava estonteante. A leitura estava um pouco enfadonha. Eram assuntos técnicos relativos a uma prova que faria. No meado da minha querida Avenida Suburbana subiu um vendedor ambulante. Ele não estava com o seu colete verde, como a maioria que está cadastrada junto à prefeitura. Mesmo assim o motorista permitiu o seu acesso. A sua voz me chamou a atenção. Lembrei-me rapidamente dele. Já o tinha visto diversas vezes. O seu discurso era interessante. Era um tipo conversador. Mas não era um vendedor persuasivo, chato. Ele falava com um humor refinado. Falava de política, dava dicas, definia palavras, mostrava conhecimento. Era um conhecimento simplório, popular, mas interessante de se ouvir. Ele apelava para que comprássemos as balas de gengibre que vendia, mas apelava explicando o verdadeiro significado da palavra “apelar”. Eu tentava continuar lendo meu material, mas meu sorriso começava a ficar estampado. Lembrei que nunca tinha contribuído. Talvez porque ele sempre vendesse balas que não me atraíssem. Resolvi ajudar. Retirei todas as moedas que estavam em minha carteira. Entreguei a ele. Ele não quis aceitar. Queria me dar as balas de gengibre. Disse-lhe que não era esmola. Que era por ele. Irrelutante, ele me convenceu a pegar pelo menos a metade das balas. Fiquei sem saída e, para não criar caso, acabei aceitando. Antes de descer do ônibus, ele passou mais uma vez por onde eu estava. Perguntou-me baixinho o meu nome. Disse-me o dele: Israel. Afirmou que havia gravado a minha fisionomia e que não se esqueceria mais de mim. Pediu-me desculpas por ter me “forçado” a aceitar as balas. Então ele desceu para continuar o seu trabalho diário. E eu levei o resto da viagem sem conseguir me concentrar nos estudos, refletindo na enorme importância que dez centavos fazem para um vendedor ambulante. É óbvio que Israel é apenas um exemplo dos milhares de vendedores que atuam na região metropolitana de Salvador. Todos esses homens e mulheres corajosos que lutam dia-a-dia para obter o alimento diário merecem essa justa homenagem. Eu dedico a eles o tempo que levei para escrever este texto e tudo o que aqui foi exposto.

Comentários

Rafael França disse…
Não sei, amigo, se este Israel é o mesmo vendedor que outrora me fizera arrancar R$1,00 da carteira e comprar vinte balas de maracujá: não lhe perguntei o seu nome. Mas, por diversas vezes, também perdi a atenção no que estava fazendo por que ele discursava com a eloquencia e a retórica de poucos. A vontade que tive foi de alimentar uma discussão sadia. A sua crônica foi um refresco para a minha memória, que, alimentada a cada viagem, tem nos "busus", entre idas e vindas para o lar, momentos oportunos de reflexão, aprendizado e relativa serenidade. Parabéns, irmão. Você continua sendo o pilar mais firme do blog, mas sabe que o meu retorno é iminente. Um abraço,

RF
Quéren disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Quéren disse…
Muitos destes citados no texto, muitas vezes achamos chatos, inoportunos. É muito raro não ser um daqueles que coloca uma bala no colo de alguém mesmo percebendo que o mesmo está cochilando. Esses"Israéis" são raros e merecem ser tratados com atenção. Valorizá-los é mais do que válido.
Pessoas que trabalham dignamente, trabalham duro um dia inteiro para sustentar suas famílias, à vocês esse texto.
Ti, parabéns pelo texto.
Rafa, esperamos pelo seu retorno e aguardamos o texto do domingo anterior,rs.
Beijo
Jaqueline disse…
Nossa!!! Essa é a terceira vez que venho postar um comentário aqui. Espero que dessa vez eu consiga!!!

Amei o texto como sempre. Esse seu novo post me trouxe uma coisa que ha muito tempo não conseguia. Um sorriso de verdade. Não sei porque mas, eu não contive o riso quando li o seu texto e o comentário do Rafael (20 balas de maracujá!!!).

Apesar de não morar aí em SSA, aqui onde moro não é muito diferente. E lendo, percebee que poucas vezes dou ATENÇÃO. Eu prefiro não ouvir. Confesso que fico sempre comovida com as histórias contadas por eles. Mas, não ouço porque já me enganaram nessa e eu não gostaria que isto se repetisse.

PARABÉNS e um beijo para todos vocês do INTITULÁVEL.
Anônimo disse…
Esse texto meu é um reflexo do quanto eu aprendo com as pessoas consideradas "ignorantes".

Obrigado Jaque por mais um comentário. Saber que existem pessoas que leem nossos textos, riem e aprendem com eles, é com certeza a nossa maior recompensa.

Tiago França

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