- Rafael, quanto tempo! Encontrei-te no Orkut, adicionei-lhe e deixei-lhe um “scrap” ontem; você viu? – desta forma fui interpelado por uma inesquecível amiga de infância que não via há quase sete anos. Respondi-lhe rapidamente que não e, ao mesmo tempo, tocando-lhe aos cabelos e abraçando-a, perguntei-lhe como havia passado todo esse tempo e como estava a sua família. A resposta que recebi foi uma onomatopéia que, proferida instintivamente, quase parecia ter algum sentido e o que tinha era, na verdade, a função de abrir espaço para a sua próxima pergunta: “você é foda, velho; não olha o seu Orkut, não”? Ligeiramente contente pela surpresa e meio sem graça, agradeci-lhe pelo gesto. Ela acrescentou ainda que descobrira no meu perfil o endereço do meu trabalho e que – por morar próximo ao local – ali estava propositalmente para me encontrar.
Bittencourt, como era chamada no colégio pelo nome de guerra – artifício utilizado nas instituições militares para a criação de uma identidade individual de cada membro – sempre me acompanhava nas atividades (acadêmicas e extracurriculares) durante a minha adolescência. Na época em que “depoimentos”, “recados” e “comunidades” eram palavras cujos significados poderiam ser facilmente compreendidos apenas com o auxilio de um dicionário (sem a exigência de se ter um login e uma senha para dispor de tais conhecimentos alternativos), éramos uma dupla entrosada: tirávamos boas notas, ganhávamos notoriedade entre os colegas e professores em todas as apresentações de seminários e ainda formávamos uma dupla invencível nas partidas de carteado - durante os intervalos das aulas.
Sob os olhares curiosos de sargentos, alunos, oficiais e de todo o corpo docente, desfilávamos como bons amigos e - de mãos dadas e, vez ou outra, abraçados pelo pátio – assim tornávamos suspeitos de protagonizarmos um namoro proibido naquela instituição. Brigávamos e tínhamos muitas discussões, mas voltávamos sempre um para o outro com o dever natural da reconciliação sobressalente numa amizade verdadeira. Havia uma identidade. Uma amizade que fora construída em cima de dificuldades, anseios e desejos semelhantes: como eu, ela odiava o militarismo, temia a reprovação em todos os anos, adorava matemática, MPB e cinema.
Mas ainda não havia o Orkut. E agora eu estava ali diante dela, trepidante, surpreso e sem saber o que dizer-lhe. Ela agora já não apresentava mais aquele aspecto feminino – por quem nutria grande admiração -; apresentava sim uma tatuagem enorme no braço, um piercing na língua e vestida com uma blusa preta – com alusão à banda de rock Slipknot – me dizia, silenciosamente, que virara “roqueira”. Mas ela nunca gostou de rock. Sempre odiou. Na época, contrariávamos aos gostos mais comuns e íamos, juntos, aos shows de Elba Ramalho e Alceu Valença – de quem ela mais gostava. O que então produzira nela tamanha influência? Seria a cultura enlatada americana que penetra neste país por todos os lados através da MTV, do Orkut e dos seus similares? Teria que encontrar respostas.
Decepcionado, ouvia inconscientemente às suas palavras – ela falava de um show que haveria numa cidade vizinha à nossa – e tentava me lembrar do seu rosto reluzido pelo sol das sete da manhã sempre que marchávamos – um ao lado do outro – nas cerimônias matinais do colégio. Confesso que a sua beleza me aproximava e me trazia um orgulho ainda maior em ser seu amigo.
Nada contra os “roqueiros”; até admiro-os, por sinal. Mas aquela era a amiga mais doce que já tivera na vida. A conheci com outras idéias; ela gostava de dançar Sultans of Swing - Dire Straights comigo e me dizia que não podíamos nos aproximar muito na dança, pois assim cometeríamos um crime contra a nossa amizade e estragaríamos tudo. Adorava aquele seu cuidado e sempre respeitei o seu modo de pensar; apostei naquilo tudo e fui cúmplice de uma amizade que parecia não ter mais fim.
O seu telefone tocou, ela atendeu, trocou três breves palavras, desligou o aparelho e virando-se para mim, disse-me: - “Rey”, tenho que ir “nessa”. Vê se perde essa barriga e dá um jeito nesse cabelo, que não tá “gatinho”, não. A galera “tá” me esperando “prum” luau que vai ter aí. Já Fui. A gente se bate... (Umhaah) – beijou-me no rosto, deu dois toques na minha mão (um com a mão aberta e o outro com a mão fechada) e saiu.
À noite, enquanto acompanhava à lentidão do trânsito, pensava em chegar logo em casa pra “conhecer” um pouco mais daquela que fora a minha maior amiga, que deixara a nossa cidade – assim que concluímos o ensino médio - com o sonho realizado de cursar Geofísica em outro estado e que agora estava de volta com outra personalidade.
Maldito Orkut. Sempre acreditei nele – assim como todos (ou quase) os seus usuários – como uma ferramenta imprescindível para promover reencontros, novas amizades e até relacionamentos. Mas o meu coração, agora em desalento, não precisava desta triste surpresa. Na tela do PC, o aviso: “’rata de porão’ adicionou você como amigo(a). Deseja aceitar o convite?”. Primeiramente, visitei a página do seu perfil e para acentuar a minha tristeza vi, além de fotos bizarras, referências e apologias às drogas, ao racismo e ao demônio. Foi como ver o sangue derramado de alguém que tanto amamos. Um pouco tonto e involuntariamente traumatizado, assisti à minha mão – trepidante e auto-suficiente – encontrar à lateral da página um refúgio que dizia: “clique aqui para cancelar o seu perfil do Orkut”. Estava feito. Com o pedido de perdão aos meus 759 amigos (amigos?) cadastrados, eu agora estou fora deste mundo.
Mas que mundo é esse? Há mesmo a necessidade de haver um programa como o BBB que envolve quatorze participantes todos os anos, se temos - a todo o momento - uma exposição indiscriminada de milhões de vidas na internet? E sobre os casos de pedofilia, assassinatos e seqüestros, que nos surpreendem a cada vez que o noticiário aponta o Orkut como o principio destes crimes? Deste universo falso, arrogante e prepotente eu estou liberto.
É uma grande verdade que nunca soube usar o Orkut. As palavras que utilizava neste mundo eram, invariavelmente, as mesmas palavras que conseguia proferir pessoalmente. Isentei-me de fazer promessas inatingíveis e elogios incabíveis e, em repouso, dividia com outros tantos o mesmo espaço. A dor da amizade perdida – instalada em meu coração – pode não ser, significativamente, a mesma dor de outros ex-usuários, como eu. Mas, do lado de cá – no mundo real – sinto a alma descarregada do cansaço que se instalava a cada visita diária para descobrir um novo “scrap”. De volta ao anonimato, deixei para trás verdadeiros amigos, colegas e a maioria de conhecidos que, ao mesmo tempo desconhecidos, me levavam a questionar a necessidade da minha existência ali.
Como uma criança desejosa de nunca se desfazer do seu brinquedo predileto, deixei para trás a minha vida virtual e em todas as manhãs – em homenagem às lembranças guardadas no coração de uma época cheia de emoções e sentimentos – faço uma prece para que a parte de uma vida que eu não conheci seja resgatada e renovo – cheio de novas esperanças – o conteúdo desta crônica.
Bittencourt, como era chamada no colégio pelo nome de guerra – artifício utilizado nas instituições militares para a criação de uma identidade individual de cada membro – sempre me acompanhava nas atividades (acadêmicas e extracurriculares) durante a minha adolescência. Na época em que “depoimentos”, “recados” e “comunidades” eram palavras cujos significados poderiam ser facilmente compreendidos apenas com o auxilio de um dicionário (sem a exigência de se ter um login e uma senha para dispor de tais conhecimentos alternativos), éramos uma dupla entrosada: tirávamos boas notas, ganhávamos notoriedade entre os colegas e professores em todas as apresentações de seminários e ainda formávamos uma dupla invencível nas partidas de carteado - durante os intervalos das aulas.
Sob os olhares curiosos de sargentos, alunos, oficiais e de todo o corpo docente, desfilávamos como bons amigos e - de mãos dadas e, vez ou outra, abraçados pelo pátio – assim tornávamos suspeitos de protagonizarmos um namoro proibido naquela instituição. Brigávamos e tínhamos muitas discussões, mas voltávamos sempre um para o outro com o dever natural da reconciliação sobressalente numa amizade verdadeira. Havia uma identidade. Uma amizade que fora construída em cima de dificuldades, anseios e desejos semelhantes: como eu, ela odiava o militarismo, temia a reprovação em todos os anos, adorava matemática, MPB e cinema.
Mas ainda não havia o Orkut. E agora eu estava ali diante dela, trepidante, surpreso e sem saber o que dizer-lhe. Ela agora já não apresentava mais aquele aspecto feminino – por quem nutria grande admiração -; apresentava sim uma tatuagem enorme no braço, um piercing na língua e vestida com uma blusa preta – com alusão à banda de rock Slipknot – me dizia, silenciosamente, que virara “roqueira”. Mas ela nunca gostou de rock. Sempre odiou. Na época, contrariávamos aos gostos mais comuns e íamos, juntos, aos shows de Elba Ramalho e Alceu Valença – de quem ela mais gostava. O que então produzira nela tamanha influência? Seria a cultura enlatada americana que penetra neste país por todos os lados através da MTV, do Orkut e dos seus similares? Teria que encontrar respostas.
Decepcionado, ouvia inconscientemente às suas palavras – ela falava de um show que haveria numa cidade vizinha à nossa – e tentava me lembrar do seu rosto reluzido pelo sol das sete da manhã sempre que marchávamos – um ao lado do outro – nas cerimônias matinais do colégio. Confesso que a sua beleza me aproximava e me trazia um orgulho ainda maior em ser seu amigo.
Nada contra os “roqueiros”; até admiro-os, por sinal. Mas aquela era a amiga mais doce que já tivera na vida. A conheci com outras idéias; ela gostava de dançar Sultans of Swing - Dire Straights comigo e me dizia que não podíamos nos aproximar muito na dança, pois assim cometeríamos um crime contra a nossa amizade e estragaríamos tudo. Adorava aquele seu cuidado e sempre respeitei o seu modo de pensar; apostei naquilo tudo e fui cúmplice de uma amizade que parecia não ter mais fim.
O seu telefone tocou, ela atendeu, trocou três breves palavras, desligou o aparelho e virando-se para mim, disse-me: - “Rey”, tenho que ir “nessa”. Vê se perde essa barriga e dá um jeito nesse cabelo, que não tá “gatinho”, não. A galera “tá” me esperando “prum” luau que vai ter aí. Já Fui. A gente se bate... (Umhaah) – beijou-me no rosto, deu dois toques na minha mão (um com a mão aberta e o outro com a mão fechada) e saiu.
À noite, enquanto acompanhava à lentidão do trânsito, pensava em chegar logo em casa pra “conhecer” um pouco mais daquela que fora a minha maior amiga, que deixara a nossa cidade – assim que concluímos o ensino médio - com o sonho realizado de cursar Geofísica em outro estado e que agora estava de volta com outra personalidade.
Maldito Orkut. Sempre acreditei nele – assim como todos (ou quase) os seus usuários – como uma ferramenta imprescindível para promover reencontros, novas amizades e até relacionamentos. Mas o meu coração, agora em desalento, não precisava desta triste surpresa. Na tela do PC, o aviso: “’rata de porão’ adicionou você como amigo(a). Deseja aceitar o convite?”. Primeiramente, visitei a página do seu perfil e para acentuar a minha tristeza vi, além de fotos bizarras, referências e apologias às drogas, ao racismo e ao demônio. Foi como ver o sangue derramado de alguém que tanto amamos. Um pouco tonto e involuntariamente traumatizado, assisti à minha mão – trepidante e auto-suficiente – encontrar à lateral da página um refúgio que dizia: “clique aqui para cancelar o seu perfil do Orkut”. Estava feito. Com o pedido de perdão aos meus 759 amigos (amigos?) cadastrados, eu agora estou fora deste mundo.
Mas que mundo é esse? Há mesmo a necessidade de haver um programa como o BBB que envolve quatorze participantes todos os anos, se temos - a todo o momento - uma exposição indiscriminada de milhões de vidas na internet? E sobre os casos de pedofilia, assassinatos e seqüestros, que nos surpreendem a cada vez que o noticiário aponta o Orkut como o principio destes crimes? Deste universo falso, arrogante e prepotente eu estou liberto.
É uma grande verdade que nunca soube usar o Orkut. As palavras que utilizava neste mundo eram, invariavelmente, as mesmas palavras que conseguia proferir pessoalmente. Isentei-me de fazer promessas inatingíveis e elogios incabíveis e, em repouso, dividia com outros tantos o mesmo espaço. A dor da amizade perdida – instalada em meu coração – pode não ser, significativamente, a mesma dor de outros ex-usuários, como eu. Mas, do lado de cá – no mundo real – sinto a alma descarregada do cansaço que se instalava a cada visita diária para descobrir um novo “scrap”. De volta ao anonimato, deixei para trás verdadeiros amigos, colegas e a maioria de conhecidos que, ao mesmo tempo desconhecidos, me levavam a questionar a necessidade da minha existência ali.
Como uma criança desejosa de nunca se desfazer do seu brinquedo predileto, deixei para trás a minha vida virtual e em todas as manhãs – em homenagem às lembranças guardadas no coração de uma época cheia de emoções e sentimentos – faço uma prece para que a parte de uma vida que eu não conheci seja resgatada e renovo – cheio de novas esperanças – o conteúdo desta crônica.
RF
Comentários
RF
nem sabia Rafa, que vc escrevia assim... legal a idéia de vcs...
Bjão