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O baile

Estavam todos de olhos vendados. Iam ao baile à fantasia as pessoas que procuravam amizades, amores e entretenimento. Naquele dia sem data não foi diferente. A cada nova figura, uma nova surpresa. Dançavam todos ao seu ritmo peculiar. Havia danças para todos os gostos, desde a mais lenta à mais frenética; o resultado foi um misto de performances que preparava a noite para um grande encontro.
Contrariando à regra, tirei as vendas dos olhos e passei a observar, comedidamente, a tudo o que ali acontecia. Sou, portanto – além de infrator -, a única testemunha ocular do acontecimento mais significante de todo o baile.
Antes de ir direto ao choque, devo dizer, primeiramente, que entrava ali quem bem quisesse; bastava caracterizar-se que o acesso estava garantido. A festa não tinha limites e sequer teve um começo; as pessoas entravam e saíam quando preferissem. Não era permitido trocar afagos e carícias e o máximo que se conseguiam eram cochichos e confidências.
Naquele refúgio coletivo vi, desde as primeiras horas do dia, gente de todas as crenças, classes, raças, idades e lugares. Conheci algumas pessoas e não conseguia, sequer, simpatizar com alguma delas; assim descobri que a mágica daquele lugar estava mesmo em vendar os olhos e dar a vez de falar à alma.
Faltavam poucos minutos para a meia-noite quando me decidi por ir embora e nunca mais voltar naquele lugar, pois já estava cheio da vida alheia – ouvia, naquele instante, de uma senhora de trinta e seis anos, o desabafo de que o seu marido já não lhe dava a mesma atenção de cinco anos atrás – e aquilo me entediava. Despedi-me rapidamente e corri como quem buscava desesperadamente a liberdade - queria um pouco de luz. Desviei-me com dificuldade de algumas pessoas e quando estendi a mão direita à maçaneta para abrir a porta, esta me acertou em cheio.
Todos ali estavam em relativa desvantagem em relação a mim; não apresentavam resistência às imposições do local e mantinham os olhos vendados, mas por aquele impacto eu não esperava – fui atingido em cheio e lançado ao chão. O sangue que descia do meu nariz precisava gritar pra ser visto. Rapidamente, a pessoa que abriu vigorosamente a porta, caminhara a passos largos ao seu destino.
Mesmo no chão, tentei identificar quem era o meu algoz. Ergui a cabeça lentamente e só pude vê-la de costas; agora tenho apenas na memória o brilho dos seus cabelos. Com os seus cabelos, concomitantemente, brilhavam a sua fantasia e tudo o que pertencia ao seu corpo. Com um esforço profundo, consegui erguer-me e decidi-me por procurá-la. Queria entender por que brilhava tanto. Aquele brilho era rápido como um tufão e só me restou seguir os seus rastros.
Consegui me aproximar alguns poucos metros após muito esforço, mas ali mesmo parei diante do que vi. O brilho agora não era apenas propriedade da sua fantasia e ela estava com mais alguém. Era um homem e este sim, eu consegui ver a feição.
Observei àquele rapaz quando ele entrou a pouco mais de trinta minutos antes do incidente. Passou vagarosamente por mim e cumprimentando-me - instintivamente como ninguém ainda havia feito - recostou-se à parede mais próxima. Ainda pude vê-lo a conversar com algumas pessoas, mas me soava tão altivo e desinteressante que desprezei a importância daquele moço.
O fato é que havia um entrosamento naqueles dois que me levava a crer que aquele era um encontro marcado e muito esperado por ambos. O sorriso dele desfez aquela imagem que havia ficado quando o vi pela primeira vez; ambos pareciam saber da prévia existência do outro e continuavam a dançar. Não era preciso ver mais nada e nem tirar satisfações; só me restou o caminho de casa. Fui embora feliz com o que presenciei. O peito preenchido pelo amor que brotava daquelas almas e inundava tudo ao redor. Chorei, quis voltar no tempo e recuperar a minha vida. Aquilo marcou-me apenas por uma noite: dirigi-me ao bar mais próximo, embriaguei-me e esqueci tudo no dia seguinte; hoje percebo que era a oportunidade ínfima que Deus me dava naquele momento.
Pensei em voltar atrás, mas já era muito tarde. Por não acreditar no amor, hoje vivo à margem da sociedade. Entreguei-me à bebida e perdi a companhia dos meus filhos, o meu emprego e o meu casamento.
A minha família me largou e não tenho amigos; convivo com colegas de rua - moradores do asfalto como eu. Durmo pouco por causa do trânsito intenso; sofro com o barulho e o frio intenso das avenidas; não tenho um endereço definido. As minhas poucas horas de sono são infrutíferas. Certamente é o maior castigo divino. Não peço muito. Já não quero a minha vida de volta, quero apenas poder sonhar novamente, pois queria retornar àquele baile à fantasia...

RF

Comentários

Anônimo disse…
É difícil comentar texto literário, principalmente quando os mesmos são digressivos ou introspectos. Confesso que a escrita é envolvente, mas talvez a minha leitura dinâmica e (talvez) superficial não me tenha permitido entender. Mas nem sempre precisamos entender um texto, isso aprendi com Clarice. Às vezes, só precisamos sentir. Parabéns, meu primo e parceiro, continue escrevendo. Um abraço

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